Já se pegou respirando fundo um ar que poderia ter passado pelos pulmões de uma pessoa que deixa saudades? Ou caminhar pelas ruas, onde paisagens são completamente diferentes de anos atrás, mas que cada passo se torna especial só porque essa mesma pessoa caminhou na mesma direção que você?

Isso me aconteceu meses atrás. Em uma cidade onde o nome reverencia um homem que desbravou novos mundos e, segundo consta, deu um pequeno lapso de respeito a quem era diferente e estava vulnerável no próprio lugar que vivia.

O lugar se chama Rondonópolis, cidade localizada no Sul do estado de Mato Grosso. E a pessoa que lembrei, é meu avô, Massao Ishizuka. Um dos primeiros imigrantes japoneses desse, então, novo mundo que eu chamo de cidade natal.

O lugar

Rondonópolis sempre foi considerada uma incógnita de sentimentos por uma boa época da minha vida. Uma vez que passei os melhores momentos da vida, mas que ao mesmo tempo, passei os piores e mais tristes.

Isso porque, era lá onde minha família inteira se reunia para passar os melhores finais de ano que tenho em mente. Mas, que ao fim, foi cenário da última despedida dos meus avós maternos. E desde então, tudo perdeu um pouco de sentido por muitos anos. Até que me foi concedida a missão de retornar e encontrar minhas raízes novamente.

Massao Ishizuka, primeiro presidente do clube nipo-brasileira de Rondonópolis

Voltei para ficar dois meses por lá. Era época das eleições e tudo tendia a ficar corrido, intenso e sem espaço para pensar muito em mim. Mas quando o sentimento é forte, a memória afetiva se espalha. Com isso, tudo fica mais claro a cada rua cruzada, no mesmo lugar que você acreditava piamente que tinha poucas lembranças.

E, na oportunidade, resolvi desenterrar um antigo sonho. O de homenagear meu avô com um nome de rua ou praça. Embora seja uma grande honra ter um parente lembrado dessa forma, na verdade, eu queria que as pessoas tivessem a oportunidade de lembrar ou saber da existência dele.

Não por ele ser meu avô – o que, de fato, é um grande orgulho para mim -, mas porque ele soube construir uma história inspiradora. E que, assim como Rondon (aquele que serviu de referência para o nome da cidade), soube desbravar mares, rios e terras, e atravessar o planeta para chegar e ajudar a construir a história desse lugar.

Sua história

Foram 82 anos da sua presença aqui entre nós. E desde 1950, foi a primeira vez que ele se encontrou com as águas do Rio Vermelho, o mesmo que banha e abastece esse, então, pequeno vilarejo que hoje é uma das maiores potências do país.

À época, ele dizia que a cidade era bastante pobre e sequer estava marcada no mapa. O que inicialmente, poderia desmotivar qualquer pessoa que atravessasse o mapa mundi para reconstruir a vida. Mas os olhos pequenos e sensíveis do meu avô, soube enxergar o lugar com grandeza, por ter acesso ao norte e ao sul do país e ser próximo aos principais biomas da região.

Por Rondonópolis, colheu café e também foi o primeiro a plantar pimenta do reino no Estado. Além disso, vendia hortaliças que as pessoas do local não sabiam o que eram ou como comiam, como berinjela, abobrinha, entre outros. Alimentos que hoje, já fazem parte da cultura de todos.

Foi também o primeiro dentista prático da região. Aos fundos da chácara onde morava com a minha avó e os 10 filhos, montou um pequeno consultório de atendimento. Vinham pessoas de todos os tipos para tratar os dentes ou o que ele pudesse ajudar.

Massao com políticos de destaque da época

E, independente de ter dinheiro ou não, meu vô atendia a todos. E a prova disso é que, mesmo após anos de aposentado, ainda recebia um pagamento ou outro de pessoas que honraram suas ‘dívidas’ anos após o tratamento.

E mais uma entre tantas outras conquistas, foi o primeiro presidente do clube nipo-brasileiro da cidade. Promovia festas tradicionais japonesas, aulas de idioma e dança. Até ser censurado pela ditadura na época, que o ameaçou de prisão por cultivar a própria cultura. Ignorância sem tamanho que, infelizmente, é refletida até os dias de hoje.

Deixou a cidade no início dos anos 1990. E não porque queria, mas é que na Capital poderia ter o apoio dos filhos. E viveu até o ano de 2001, à véspera do feriado de 7 de setembro. Dia triste e marcado na memória.

Eterno

Uma coisa que lamento no nosso país, é que diversos nomes homenageados não mereciam estar onde estão. Uma gama de torturadores, estupradores, assassinos e outras nomenclaturas horríveis, podem definir boa parte dessas pessoas que pouco somaram para o bem da nossa sociedade, mas que foram tristemente eternizadas.

Com a esposa, Teruko Ishizuka, recebendo a certidão de cidadão ‘rondonino’.

Mesmo que o sistema seja falho, decidi que ele pode ser usado ao nosso favor. E por isso, batalhei para que o nome do meu avô fosse igualmente eternizado em uma placa, para que assim pudesse ficar registrado na memória dos rondonopolitanos.

E nessa campanha política que trabalhei, aproveitei a oportunidade para encontrar meios de fazer essa reverência. Até que em meio a loucura do trabalho, o prefeito me chamou e disse que o nome do meu avô havia saído no Diário Oficial da cidade.

Me debulhei em lágrimas ao ver que a data da publicação era a mesma do dia do nascimento dele. A sensação foi como se ele tivesse acompanhado todo o processo e, como uma forma de comemoração de aniversário, essa ‘coincidência’ foi registrada.

Saiu exatamente no dia 03 de novembro de 2020, o qual o nome de “Massao Ishizuka” foi dado a Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada na avenida Marechal Dutra esquina com a Rua Augusto de Moraes s/n, centro B do município de Rondonópolis.

A confirmação do nome da UBS Diário oficial da cidade de Rondonópolis

Meu avô, que em vida ajudou dezenas de pessoas, independente do horário ou se tinha dinheiro, hoje, tem seu nome gravado em um lugar que oferece tratamento a quem precisa, assim como as que passaram em sua casa.

Senti como se tivesse cumprido uma missão na terra, por fazer reverência a todos os meus ancestrais por meio deste feito. E me colocar no lugar de neta, que está aqui para aprender e ser o suporte quando necessário.

Meu coração se encheu e eu sei que o dele também. Seja onde estiver, a nossa conexão foi novamente selada com esse presente, em troca de tudo que ele conseguiu me passar em vida. De um momento, para a eternidade.

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Simone também é Sika. Jornalista e artista visual (não necessariamente nessa ordem). Ex-cinéfila que gosta de estudar música e seus personagens, assim como outras vertentes da arte. Feminista, mistura de asiática com paraguaia e cearense, natural de Rondonópolis (MT). Mora em São Paulo, mas leva Cuiabá sempre no coração e no 'djeito'.

Comentário

  1. Merecida homenagem. Guardo boas lembranças da comunidade japonesa em Rondonópolis. Quando criança, eu sempre passava pelo “campo do japonês”, apreciava os esportes aos domingos e as festas promovidas em algumas épocas do ano.

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