Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Falar de história e literatura negra no Brasil é uma tarefa que consiste em romper as barreiras da discriminação social, étnica e cultural. Analisar a produção literária acerca da representação do negro na literatura brasileira, portanto, é tarefa que se faz pertinente a partir de um conceito que rompa com a limitação estética que o termo “Afrodescendente” sugere. De que África estamos falando, a qual dos cinquenta e quatro países que compõem o continente africano estamos nos reportando? Falamos de uma África católica, tribal, evangélica, ou muçulmana? O escritor e estudioso paulista CUTI chama a atenção para o fato de que os meios de comunicação divulgam excessivamente as tragédias e misérias do continente africano, o que por si só provoca uma associação imediata da cultura negra com coisas negativas. O que parece sutil para alguns, não o é para quem sente na pele a discriminação. Se assim tem sido desde a nascente Antropologia brasileira, na Sociologia e na Literatura, de acordo com o pensador, faz-se necessária uma reflexão que ofereça contraponto ao estabelecido no cânone branco da oficialidade nacional.

A narrativa nacional do século XIX traz a figura do negro como utilitária e desprovida de status. Possuir escravos era sintoma de enriquecimento. Como a literatura registra o que acontece e também o que poderia ter acontecido, encontramos na produção escrita oitocentista um registro mais próximo da subserviência às elites, mesmo que de maneira coercitiva, como registro simbólico eficiente do mecanismo reprodutor de um “status quo” dominante do branco em relação ao negro e índio.

É essa leitura da História que muitas vezes se apresenta deficitária. Até pela concepção que se construiu ao longo do tempo, materializando um universo hegemônico de caráter positivista que atravessou boa parte do século XX de maneira monolítica. Em que nível relacional, portanto, podemos tratar essas inferências como complementares, interdependentes e ou distintas para pensar a produção cultural entrelaçada pelo que nos une e ao mesmo tempo nos diferencia?

O maior escritor brasileiro até hoje, Joaquim Maria Machado de Assis, é bastante cobrado pela crítica oficial por não ter se pronunciado explicitamente a favor de uma negritude; por ser mulato. A tentativa de dividir sua obra em duas fases, uma romântica e outra realista, faz parte de uma estratégia do cânone para que coloquemos o conjunto como algo anterior e posterior ao período republicano, como se a simples mudança de regime pudesse controlar o processo criativo de qualquer artista.  Como se fosse possível falar de qualquer sociedade sem a complexa formação social intrínseca a qualquer comunidade.

machado-de-assisEssa omissão, espécie de silenciamento, vem na esteira do cientificismo do século XIX. A figura do negro, colocada sobre a égide da fraqueza e declínio moral, é construída historicamente e perdura ainda apesar do mito da democracia racial. Se o autor não explicita, aos olhos de muitos, seu olhar de mestiço para defender o negro, talvez uma leitura mais acurada possa rever esse ponto de vista. No clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas, o corte de Machado na cultura positivista se materializa na vida adulterina de Virgília, casada com Lobo Neves e amante de Brás, ao passo que Eugenia, a flor da moita, a que é coxa, a que puxa da perna, lembra-nos uma espécie de deficiência que caracterizaria um espécime com algum problema físico que remeteria sua existência à seleção natural, condenando-a como presa fácil da cadeia alimentar.

A dificuldade de formação de núcleos familiares entre negros no Brasil pós-abolição prolongava o que o período colonial consagrou como política dirigente. Parte desse registro das relações afetivas entre homens e mulheres negras no Brasil se constrói pelo viés da discriminação. Mas a resistência encontra nos mocambos e quilombos seu espaço por excelência. Palmares é apenas o mais famoso dentre todos os existentes. A Assembleia Provincial do Maranhão, por exemplo, considerava que uma reunião de cinco negros já caracterizava uma formação quilombola. Hoje encontramos em solo maranhense o maior número de comunidades descendentes desses ajuntamentos, mais de mil e quinhentas.

Nossa riqueza é em grande parte tributária da contribuição africana. Verbetes como quindim, quitute, batuque, cochilar, xingar, muxingueiro, caçula, fuxicar, mocotó, mungangas, muxoxo, mulambo, mandinga, muxiba, quitanda e senzala são contribuições para enriquecer a língua oficial. Enquanto houver um toque de caixa, um batuque, um par de mulatas de salto alto “quebrando tudo” em frente às câmeras de televisão, o mito de democracia racial estará presente. O “Fora Temer” também está em alta, ao menos em ritmo de marchinha de carnaval. Ainda lembro-me do Jô Soares em tempos da ditadura; o humorista dentre muitas de suas facetas semanalmente avisava:

– Vai pra casa, Padilha!

Parece novela e nesse vale tudo sempre é bom lembrar que é carnaval, a festa da carne. E que na quarta-feira, depois das cinzas tudo volta ao seu normal: Vinde e vede com seus próprios olhos!

*Luiz Renato de Souza Pinto é poeta, escritor, ator performático e professor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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