Ao entrar a sensação é de nostalgia. Aquela atmosfera de casa antiga de Cuiabá está impregnada em cada parede. É uma história própria a ser imaginada: a casa da vó, as crianças brincando de pega-pega nos fundos, o café fresco da hora, a broa de milho quentinha, o filtro de água feito de barro, os azulejos azuis, o piso avermelhado que lembra terra batida, a cadeira de fios na varanda para acompanhar o devir da rua no fim de tarde, o guaraná ralado, a música cantando alto na vitrola. Um sonho, uma memória. Pode ser tudo isso ou nada disso, não importa. O que importa é o sentimento que desperta, é a imaginação, a criatividade palpitante que vem da possibilidade de criar.

Foto Carol Marimon
Foto Carol Marimon

A casa vem à vida novamente ao se tornar Metade Cheio e se firma como um abrigo para a arte e a cultura no coração do Centro Histórico.

No corre-corre de um domingo enquanto atendem clientes, servem cafés e pedaços de bolo, entre um sorriso e cenários diversos Alexandre Cervi e Hiasmyn Lorraine apresentam a ideia que transformaram em realidade.

Foi preciso literalmente meter a mão na massa para fazer o sonho ser mais que sonho. O conceito do que projetaram tomou corpo no último ano. De seis meses pra cá, a vida dos dois jovens artistas passou por uma reforma tal qual a casa que os acolhe.

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“Começamos a trocar impressões sobre o que gostávamos ou não nos lugares e percebemos essa veia profissional parecida, essas afinidades enquanto sócios aprofundou a nossa amizade. No ano passado depois de jogar ideias no ar decidimos nos reunir todo domingo para definir o que faríamos: um café bar? Um espaço literário/cultural? um espaço multi em que mais de uma coisa aconteceria? Sabíamos que seria no centro histórico por que queríamos esse movimento de centro e para nós o lugar mais bonito para fazer algo”, contou Cervi.

Com o rascunho do que queriam em mente partiram em busca de um espaço que pudesse receber todas as possibilidades. Neste percurso pensaram que teriam dificuldades e já imaginavam adequar o projeto. Mas então aconteceu. Aquele momento que nos encaminha para o que queremos, mesmo sem sabermos ao certo.

“Este foi o primeiro lugar que pegamos a chave. E quando entramos pensamos como viver com a ideia de que não seria aqui? Aqui cabia tudo. As múltiplas possibilidades de ser. No fim do ano passado batemos o martelo e foram seis meses de reforma. Mas tentamos voltar o mais próximo ao original, a casa havia sido modificada, tinha algumas paredes de gesso, e queríamos preservar a sua identidade. Por isso a decoração é mais crua, com madeira, metal, vidro. A história da casa é forte e a ideia era manter isso, manter essa identidade de casa cuiabana”, disse Cervi.

A movimentação começa a ficar cada vez mais intensa. As pessoas chegam para comprar ingresso da apresentação da peça OraMortem, que realizou uma curta temporada na semana de inauguração do Metade Cheio. Enquanto os dois se dividem no atendimento e no serviço, eu e Carol Marimon sentamos com um copo de café metade cheio e um pedaço de bolo. Juntos fazem testes na cozinha. A proposta é um cardápio novo toda semana. Passar na feira e se inspirar com o que está fresco.

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Enquanto aguardamos para retomar a entrevista, na beira do balcão, um cliente pergunta: por que metade cheio? Cervi responde algo como ver as coisas de maneira positiva, pela coletividade. Sentados na sala de azulejos azuis em frente ao seu salão repito a pergunta.

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“É uma forma de lidar com Cuiabá, a cidade está crescendo e isso é lindo. Se Cuiabá é um copo pela metade, é metade cheio. É a energia de se sentir positivo. Quando as pessoas chegam e falam ‘que bom que abriu, nem parece que é em Cuiabá’, eu já respondo na hora: tanto parece como é Cuiabá. Tudo o que tem na casa é daqui. Os móveis antigos são de Cuiabá, não tem nada de fora”.

Pergunto para ele se isso está relacionado ao nosso sentimento de que tudo que é de fora é melhor, resquícios da colonização. “Esse é o típico vira-latismo que existe no Brasil de pensar que somos terceiro mundo e o que tem na Europa, EUA é melhor do que aqui. Aqui é um ponto fora dos grandes eixos e fico surpreso por que eu vi uma oportunidade aqui, tenho o senso de que São Paulo seria mais um e aqui faria diferença, mesmo que para os amigos. A Bianca Poppi sempre falava que a moda que ela fazia aqui era regional sim, mesmo que não tivesse chita ou elementos típicos. É regional por que é daqui”.

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Pelo respeito a todas as questões, não utilizam nada de plástico. Por exemplo, a casa não oferece canudo e como disse Cervi: é um pé na sustentabilidade. E apostam realmente nesta coletividade, construir juntos, não só o Metade Cheio, mas parcerias com as pessoas para criarem possibilidades.

“Somos um espaço ponte para novos criadores, participantes, é um meio, não ditar regras mas ser um espaço, intimista, acolhedor, ser uma opção. De quarta a domingo sempre teremos uma programação cultural, seja filme, dança, oficina, teatro. Tomamos consciência da nossa criatividade, não somos mais criativos, mas materializamos essas ideias. Se não tivesse certeza que daria conta não tinha me proposto. Participamos de todos os processos, pintamos parede, coloquei porta, mexemos em toda a parte interna, tirando o serviço de eletricista, pedreiro e pintor da fachada, o resto foi tudo nosso. Usamos o punho para fazer, nossas mãos para sair do papel. Tem um dito que é: o feito é melhor que o perfeito. A gente queria fazer. É isso. Fazer.”

Cervi troca de lugar com Hiasmyn e a acompanhamos até seu estúdio. Passamos pela cozinha e descemos uma escada. Lá está o seu espaço, com os seus desenhos, tintas, equipamentos para tatuar. Pergunto para ela a história para chegar ali.

“Sempre tivemos uma vontade de fazer acontecer em Cuiabá, algo diferente e especial, que a cidade precisa e merece. Eu e o Alê temos muita afinidade de ideias e foi tomando corpo, seis meses de concepção e mais uns seis meses de reforma. Tem artistas que nos apoiam desde o começo como o Fusca Sebo que tá aqui, e os amigos foram se envolvendo, o Hugo Alberto que está expondo na galeria, a Juliana Fernandez”.

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Para Hiasmyn faltava um lugar de inspiração e criação em Cuiabá, algo que como artista ela sentia necessidade. “As andanças e viagens por aí coletando vivências legais despertaram a vontade de fazer algo tão legal quanto. Aqui é um processo e não um lugar em si”.

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“É o desejo de tornar Cuiabá possível. É muito aberto à possibilidades. Queremos que seja um lugar para manter os artistas em Cuiabá que muitas vezes precisam ir embora para conseguir sobreviver da sua arte. Se quer sonhar em viver disso tem que ser fora daqui, então o espaço espera ser esse lugar e claro isso vai depender das pessoas que passarem por aqui”.

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Conversamos mais um pouco, olhamos seus desenhos e saímos por uma porta diferente da que entramos, passamos pela área de convivência perto do estacionamento e subimos as escadas. Voltamos a sala do café-bar. Pedimos duas heinekens, sentamos e esperamos até começar OraMortem. Subimos as escadas e no ateliê na parte superior mergulhamos no jogo de sombras, no suspiro da memória, no espelho d’água da lembrança.

Em um fim de tarde que se transformou em noite transbordamos no Metade Cheio.

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