“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” – Simone de Beauvoir

Essa frase da filosofa existencialista e feminista francesa traduz o momento atual, e cabe incluir aí também os direitos da população negra, indígena, LGBTQI+. O pensamento conservador disseminado pelas bolhas ideológicas formadas pelos algoritmos das redes sociais encontra terreno fértil para a proliferação do ódio. O fundamentalismo avança, o retrocesso se instala no cotidiano.

E se o momento pede resistência é preciso insistir no diálogo, construir as pontes de comunicação com afeto, trazer o verbo e o pensamento crítico para incentivar às mudanças sociais e políticas necessárias.

Para alargar as possibilidades de debate fui até à sede da ONG Católicas pelo Direito de Decidir onde entrevistei a assistente social, mestra e doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Católica (PUC-SP), Regina Soares Jurkewicz.

Temos que abrir essas frestas para promover encontros. Fundada em 1993, a ONG apoia-se na prática e teoria feministas trabalhando com formação, seminários, publicações, acompanhamento da pauta no Congresso Nacional, projetos de lei, comunicação. Nossa conversa teve como foco exatamente esse encrudescimento da direita e do pensamento conservador. É a onda fundamentalista que se alastra pela sociedade, também reflexo das movimentações políticas.

“Desde 1993, trabalhamos nesse cruzamento de religião e sexualidade, buscando ter uma visão positiva da religião frente as questões ligadas à sexualidade, sobretudo para a vida das mulheres. Procuramos divulgar o máximo possível que existe um pensamento dentro da própria teologia católica que não é condenatório ao que tem a ver com a sexualidade, não tem essa visão de pecado que muitas vezes passa pelo pensamento da igreja oficial”, explicou Regina.

Com uma vertente de pensamento diferente, com base em teologias com uma visão mais positiva, Regina cita as questões sensíveis para o trabalho da ONG: “Temos a ideia de que o catolicismo é um só, mas existem vertentes diferentes e nós temos essa visão positiva de algumas questões como da decisão sobre a sexualidade, respeito à identidade de gênero diferenciada, a questão de tomar decisões no caso da vida reprodutiva, para isso tudo existem argumentos de por que as pessoas tem a mesma dignidade, sejam homossexuais, pessoas trans, mulheres que chegam a conclusão de fazer um aborto. Tem como viver de uma maneira positiva e não de culpabilidade”.

Pergunto para Regina como foram percebidas as mudanças de 1993 até 2017 no tocante à essas pautas tratadas como tabus na sociedade.

Foto Facebook Católicas pelo Direito de Decidir

“Vemos que a sociedade em geral hoje é muito mais aberta para temas como a questão do aborto, que era um tabu quando começamos, era conversa de feminista e hoje não. Muitas pessoas se interessam pela temática, discutem, tomam posição e há uma mudança de mentalidade na população. Fizemos uma pesquisa Ibope em fevereiro e uma das perguntas era “você acha que é a mulher quem deve decidir sobre o aborto?” e 64% das pessoas pesquisadas responderam positivamente. É uma decisão da mulher, não é do parceiro, não é da igreja, não é do estado. E isso há 20 anos não acontecia. Então há uma mudança de mentalidade que é fruto do trabalho de muita gente, um trabalho difuso que vem acontecendo, das mulheres, esse avanço do pensamento feminista e das correntes LGBTQI+ que conseguiram regulamentar algumas questões em termos de lei como casamento entre pessoas homossexuais, adoção e tudo isso”.

No entanto, são os avanços destas questões que trazem à tona esta reação do pensamento conservador. “Hoje vivemos uma reação muito mais forte do que antes. Tem grupos que se manifestam de forma claramente agressiva, contrária, ameaçadora e que é o que chamamos de fundamentalismo, um pensamento único que diz ‘todos tem que pensar do jeito que nós pensamos’. Então hoje acho que está mais visibilizado a presença e atuação desses grupos. Isso já vem desde 2005, começou a crescer e agora está bastante significativo. Teve mudança tanto positiva de mudança de mentalidade, uma sociedade mais aberta, mas também teve uma mudança de setores que se colocaram bastante em oposição a essa nova forma de pensar”.

Estas distorções estão refletidas no Congresso Nacional, o mais conservador desde 1964, formado em sua maioria por homens brancos. Para Regina são vários os caminhos para fazer frente à atuação política que atende ao pensamento conservador.

Foto Mídia Ninja – Brasil de Fato

“Eu acho que não tem um caminho só, existem vários caminhos. O movimento de rua é expressivo, as mulheres se organizam, o feminismo jovem está nas ruas, por exemplo. Por outro lado há também o que chamamos de advocacy que é um acompanhamento do que tem sido feito em termos de decisões políticas”.

Entre essas ações, Regina destaca a Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) que solicita junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) a descriminalização do aborto. “A ONG entrou como amicus curiae, que são pessoas que vão tentar colocar argumentos favoráveis a esse pedido de descriminalização através de um documento que é uma peça judiciária”.

Mas essas mudanças são lentas e a luta deve ser constante, por isso não é possível abandonar o trabalho político, avalia Regina. “Por que senão quem vai fazer? Em Católicas não temos uma política partidária, mas reconhecemos que é importante que existam políticos bons, senão ficaremos sem representação nenhuma. É o caminho. E já está bem ruim, mas se todo mundo decente cair fora, não vai sobrar nada”.

Foto Daniel Fagundes

Ainda assim, Regina observa que existe uma revitalização do movimento social, principalmente pelo recrudescimento da direita e do pensamento conservador.

“É um momento difícil, temos eleição no ano que vem e muitas vezes na nossa história, os direitos das mulheres acabam servindo de moeda de troca em função da bancada evangélica, da bíblia, que quer impor a sua maneira de ver para toda sociedade e que há negociações aí, atualmente é o presidente quem faz, outras épocas eram outros”.

O número de projetos apresentados pelas bancadas conservadoras é alto e aproveita este espaço no Congresso Nacional, mas Regina garante que não sem resistência.

Foto Mídia Ninja

“O movimento das mulheres está sempre acompanhando, participando de audiências frequentemente, mas isso da descriminalização do aborto tentam por todo lado fazer com que até os casos em que o aborto é legal, que é risco de vida da gestante ou violência, eles tentam que se passe por exemplo o estatuto do nascituro, que fala da defesa da vida desde o momento da concepção. E se isso passa nem esses casos que já são concedidos desde o código de 1940 serão aceitos, então vai ser um retrocesso. Do mesmo jeito que tem isso, tem outras questões e a briga está grande. Há uma coisa bem forte de tentar evitar que isso aconteça, o que temos agora é um desmantelamento dos direitos, em todas as áreas e vai ser um trabalho doido recompor tudo isso”.

E a organização desses grupos conservadores é cada vez maior. Por isso a necessidade de resistir, de dialogar, de construir possibilidades de futuro. Furar as bolhas ideológicas virtuais para alcançarmos as pessoas. Por que é através do debate e da responsabilidade de cada um que podemos transformar o amanhã. Como já antecipava Simone de Beavouir, que sejamos vigilantes para não termos nossos direitos sequestrados e dilapidados como moeda de troca na perniciosa relação entre estado, igreja e capital.

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