Foto: Alessandra Marimon
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Ao pisar os pés no espaço caloroso, alternativo e simples do teatro HochX, em Munique, na Alemanha, senti que deveria frequentar mais vezes lugares como aquele. Acolhedor, era ali que um grupo de artistas brasileiros, mexicanos e um porto-riquenho iriam apresentar pela primeira vez em terras germânicas uma performance contemporânea visceral, daquelas de arrepiar a espinha. Iriam executar movimentos de dança, sons estridentes, grunhidos, gemidos, gritos e cantos. No final, lágrimas sinceras e aplausos comovidos iriam romper-se da plateia.

Durante a apresentação do álbum Kodex_Feedback – idealizado pelo brasileiro Mario Lopes e pelo o mexicano Martín Lanz – esse grupo formado majoritariamente por latinos e negros, provocaram reações diversas em nossas entranhas. Ao nos depararmos com esses corpos “estranhos”, fora dos padrões normativos em cima do palco, fomos atingidos por uma mistura de sensações das mais primitivas e puras: dor, angústia, empatia, solidão, sofrimento, revolta… mas eles também trouxeram densas reflexões. Sem a necessidade da linguagem falada, comunicaram-nos sobre como a sociedade, enredada numa lógica excludente e em um racismo estrutural, enxerga os corpos negro e latino. E também como esses corpos reagem e são orientados nesse ambiente caótico.

Álbum Kodex_Feedback: conectando-se ao corpo

Era mês de maio e o dia estava quente, mesmo lá dentro. Procuro um assento na primeira fileira e me acomodo. Estou ansiosa. Não sei muito bem o que esperar e confesso que fico com medo de fazer falsas interpretações. Mesmo sendo latina, sou uma mulher branca envolta em privilégios. Então, quando a hora chega e antes de as luzes se apagarem, a plateia é convocada ao centro do palco e Martín inicia uma “brincadeira”. Cada um pode dizer o que quiser e quem se sentir contemplado caminha em direção ao centro da roda. A cada afirmação do tipo “eu gosto de chocolate”, os corpos se movimentam, se tocam, trocam olhares, se comunicam entre si. E as risadas e piadas explodem aqui e ali.

Pouco tempo depois apenas os atores permanecem unidos em roda. Estão ali Mario Lopes, juntamente com a mexicana Aída Arely Landeros, os brasileiros Guinho Nascimento, Rubens Oliveira, e os músicos Dandara Modesto e Paulo Monarco na parte musical. O porto-riquenho Antonio Ramos aparecerá mais para o final. De olhos fechados, palavras emaranhadas começam a sair de suas bocas, seguidas de sons agudos. Não importa o que dizem, mas como dizem. Parecem concentrados, como num ritual. Mas não chegava a ser uma oração. Ou era?

Foto: Alessandra Marimon
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Vestidos com roupas singelas em tons pasteis, pareciam pertencer a um mesmo grupo, com algo em comum. Dandara Modesto, disposta sozinha em uma extremidade do palco, domina o ambiente com a grandeza da sua voz que parece chicotear a pele a cada som. E como uma masoquista, eu me deleito. As letras da música “O Clarim” saem assim:

O clarim tocou pra avisar que devo seguir
A guerra espera com suas carícias
De fortes e francos
Armados com balões de festas e cordas de forca
Se vou à guerra é porque quero me encontrar com ela
Porém se querem me falar de paz
Esperem que eu volte da guerra em paz.

Se querem me falar de paz, esperem que eu volte da guerra em paz. Se querem me falar de paz, esperem que eu volte da guerra em paz.

Foto: Alessandra Marimon
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O surgimento

Tudo começou no inverno de 2016, em uma residência artística no Villa Waldberta, um casarão administrado pela prefeitura de Munique. Segundo o músico e produtor Paulo Monarco, o espaço tinha o objetivo de conectar a América Latina com a Europa. “Essa residência foi um gatilho. Ela foi articulada pela PlusBrasil, que é uma plataforma planejada pelo Mario. Uma das ações que desenvolvi lá dentro foi o primeiro passo do Codex_Feedback, que é o Lado B, e eu fiz a trilha sonora. Captei desde um arranhar de cadeira até os sons que os performancers emitiam; essa coisa do grito, como uma dramaturgia de nós que vão sendo desatados… porque aquilo que é abafado, de repente precisa ser gritado. E aquilo que a gente chama de microfonia, em inglês é chamado de feedback, por isso o nome”.

Foto: Alessandra Marimon
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Para um dos diretores, Martín Lanz, o projeto também nasceu da necessidade de buscar uma maneira de se conectar ao nosso próprio corpo, baseando-se em conflitos sociais e de códigos. “Dentro desse contexto começamos a falar também do movimento norte-sul. Quando a gente sabe que geralmente é mais vertical, porque se parte do norte onde se organiza tudo e chega depois até o sul. Então existe a necessidade de uma voz que começa do sul e vem para o norte”.

Segundo ele, é também uma oportunidade de reconhecer um sistema complexo que reproduzimos em nossas vidas diárias, onde existem jogos de poder, de culturas e classes sociais, além de conflitos socioeconômicos. “É um espaço para pensar, para entendê-lo e enfrentá-lo. Não sei se é dança ou teatro, é outro lugar”.

Foto: Alessandra Marimon
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Ele lembra que o projeto tem um tom interdisciplinar. Som e voz, movimento e dança se unem num casamento harmônico. Mas há também outros elementos que compõem o processo criativo. “Eu também estudei técnicas de cura para chegar até a produção dos sons. Técnicas indianas, chinesas, de vibrações. Há vários lugares onde você pode ir para buscar diferentes sons”.

Desatando os nós

Os sons e gestos emitidos por aqueles que ali performam não têm nenhuma intenção de serem bonitos, gostosos. Pelo contrário. Interpreto que a ideia é justamente tocar naquela nossa zona de conforto e, num estalo, te puxar pela gola, arrancar você de lá e te jogar ao chão. É quase como se eu tivesse que me segurar firme na cadeira para não cair. O estado é hipnótico. É para ser perturbador. Mas será que todas aquelas caras e bocas e gritos e gemidos e gestos denunciam um estado de loucura? Ou será a forma mais pura e primitiva da humanidade sendo expressada por aqueles que normalmente não têm voz?

Foto: Alessandra Marimon
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“É um trabalho de buscar esses nós, essas marcas do corpo, de exaustão; é uma qualidade física, de movimento, relacionada a uma realidade. A esse distorcimento do corpo que a gente sofre diariamente e chega a um lugar intenso.”, explica o diretor Mario Lopes.

A guerra espera com suas carícias, de fortes e francos, armados com balões de festas e cordas de for…. Silêncio. Cala a boca. A voz da cantora Dandara, que ecoava forte por todo o cômodo, é silenciada sem aviso prévio. Os corpos continuam. Dançam, se jogam ao chão, rodopiam, deitam-se em cima um do outro, imobilizam-se, levantam-se.

Foto: Alessandra Marimon
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Começa o processo de despir-se para depois vestir-se com roupas quentes de inverno. Lembro que durante a conversa sobre a peça da próxima noite, intitulada Movimento I: Parado é suspeito, Mario comenta sobre a normativa da falsa suspeita. “Falsa suspeita é quando está 30 graus e tem uma pessoa parada em frente a um prédio ou loja com uma jaqueta de inverno. É falsa suspeita porque essa pessoa poderia estar escondendo algo, como uma arma. E por isso a polícia tem todo o direito de parar e abordar esse suspeito. Só que a maioria das pessoas que são paradas são negras, e essa é a falsa suspeita que a polícia coloca como questão”. Seriam eles falsos suspeitos?

Foto: Alessandra Marimon
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Depois as roupas são tiradas lentamente. Quando todos estão apenas com as roupas de baixo, de cor preta, um após o outro vai levantando os braços em um movimento de rendição. Jovens. Rendidos. Enquadrados. A curadora e diretora criativa, Diane Lima, criadora do projeto AfroTranscendence, foi convidada por Mario para escrever sobre o Kodex_Feedback e falar também sobre a sua experiência com o AfroTranscendence. Ela se emociona ao lembrar da cena. “Quando eles colocam as mãos pra cima você pensa sobre toda a polícia, nas leis e no genocídio e na prisão de jovens e nas pessoas negras que vivem nas favelas. E eu me pergunto: o que eles querem mostrar ou o que eles querem esconder quando levantam as mãos assim?”.

Foto: Alessandra Marimon
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O porto-riquenho, que vive há quase vinte anos em Nova York, Antonio Ramos, entra em cena completamente nu, de peruca e salto alto. Enquanto os outros bailarinos voltam a vestir-se de qualquer jeito – enfiando camisas nas pernas, meias na cabeça – Antonio recita em inglês uma espécie de lista de estereótipos encontrados nesses três países: Alemanha, Brasil e México. E as palavras seguem. “México: música, dança. Alemanha: trabalho, seriedade. Brasil: carnaval, calor, mulheres, cirurgia plástica. México: tequila. Alemanha: tempo, agenda, trabalho. No fim, todos eles ficam nus ou semi-nus, alguns até estirados ao chão. Mortos? Exaustos?

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Para Antonio, o trabalho não consiste apenas em denunciar o conflito de raça, mas também o conflito de etnias, no caso, o de ser latino. “Na verdade, a gente também compartilha experiências iguais como parte do mesmo mundo. E também estou ali representando os latinos que são transgêneros, transexuais, a pessoa queer, ou qualquer um que esteja fora da norma social, do que é considerado normal. E esse é o meu papel”.

A discussão de como é visto o corpo estrangeiro ao chegar a terras europeias também foi expressada em cena. “A referência que a gente trouxe na construção dessa cena foi quando chegamos aqui e começamos a conversar de como foi a viagem. Todos trouxeram experiências no processo da fronteira de imigração, de como é um corpo não-europeu chegando até aqui. E esses movimentos que surgem na peça vem da própria experiência do corpo, de chegar no aeroporto e mandarem você tirar os sapatos e quando você olha, só você está tirando os sapatos e os outros corpos brancos passam”, afirma o artista Guinho Nascimento.

Foto: Alessandra Marimon
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Aqueles corpos expostos estavam claramente tensionados. E, consequentemente, também senti uma forte tensão. A respiração ficou presa. Pesada. Às vezes quase ofegante. Sobre esse trabalho poderiam haver diferentes interpretações sobre diferentes histórias, identidades, lugares e experiências. Mas o sentimento de tensão, de revolta, de dor e de exaustão parecia ser compartilhado por todos.

A dançarina e psicóloga social Aída Arely Landeros afirma que quando entramos no caminho dos códigos de segurança, estamos na mesma linha, no mesmo grupo, mas não é a mesma coisa para todos, especialmente quando se fala da questão de gênero. “Branco, preto, misturado, ‘meio-termo’, não importa, só porque somos latinos seremos tratados como latinos. Mas sabemos que não é a mesma coisa quando se é uma mulher latina, ou uma mulher negra em uma sociedade branca. Ou uma mulher negra com dinheiro e uma negra sem dinheiro. E somos todos parte de uma sociedade e essas fronteiras existem. Estereótipos, preconceitos e tabus precisam ser quebrados”.

Foto: Alessandra Marimon
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Identidade e ancestralidade: É “Tempo De Cura”

Com essas performances, esses artistas conquistaram um espaço pequeno mas muito importante em uma das regiões mais conservadoras da Alemanha. A maioria dos parceiros e envolvidos no projeto são negros e isso é algo que não se vê com frequência na cena artística brasileira, como enfatiza Mario. Um ponto para ser comemorado. Ali as identidades e a reflexão estão sempre presentes e ancestralidade também é colocada em questão.

“Cada um vem com sua própria crença. Tem gente do terreiro, de igreja evangélica, católica, ateu. O interessante é como construir cada um a sua parte, juntos. Cada um com sua experiência, seu lugar, sua fala, sua ladainha. Mas sei que a gente tá em tempo de cura mesmo. Não sei se tá perto ou se tá longe, mas a gente tá caminhando pra esse caminho de desatar os nós, de salivar e construir um corpo que consiga se movimentar para outros lugares. Que que a gente tá querendo curar? Bom, a gente tá vivendo num momento crítico. Tão morrendo 50 mil jovens negros por ano no Brasil. Matam mais jovem no Brasil do que muito país em estado de guerra. Isso são dados”, conclui Mario.

Para Dandara Modesto, a questão do corpo em cena não é uma questão de espiritualidades, mas de ancestralidade. “Pra alguns de nós a ancestralidade de origem, de relação de conexão, está ligada a uma religião de matriz africana. Aí nesse lugar eu acho que cruza com o espiritual, mas a ancestralidade está presente naquela oração, em quem nos conecta com o que nós somos e de onde viemos.”

Diane concorda. “Eu também senti na apresentação um lugar de ritual muito forte. Meu projeto AfroTranscendence fala justamente sobre como a gente pode conectar a memória ancestral, trazer e atualizar pra o presente pra depois transformar ela em ato artístico. Esse lugar está estabelecido a partir das próprias referências. A peça não é uma citação, é apenas uma performance da vida. E essas tentativas de acessar os nós, as curas, as forças de opressão instaladas no corpo partem mesmo dessa tentativa de explosão que a peça traz com tanto rigor”.

“E o nosso filme, ‘Tempo de Cura’, fala não somente desse contexto físico, mas também sobre o genocídio dos povos negros e da supressão de todo o conhecimento no aparato da memória; como que esses conhecimentos não estão presentes nos sistemas de educação, nas escolas de medicina, nos livros, na mídia e em nenhum outro lugar em que se possa transmitir mensagens de conhecimento. Então quando a gente também fala de tempo de cura não é simplesmente um lugar de ‘vem cá que eu te curo’. Não. É sobre como você pode encontrar e fazer o passeio na sua memória, trazendo a sua ancestralidade, do seu legado histórico, pra que esses processos de visibilização aconteçam”.

Se querem me falar de paz, esperem que eu volte da guerra em paz…

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Jornalista mato-grossense formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e aluna de mestrado no programa de Divulgação Científica e Cultural da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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