Por Túlio Paniago Vilela*

O corpo doía por inteiro. Sentia espasmos enquanto os músculos se contraíam. As inchadas pálpebras pesavam sobre os olhos fundos que mal se mantinham abertos. Não tinha forças senão para respirar. Do oco do estômago ecoava a agonia das vísceras imersas em suco gástrico.

Maldita imagem espelhada! A pele enrijecida – tal qual um jenipapo apodrecendo – denunciava que havia envelhecido precocemente nestes últimos tempos. E a palidez fúnebre não deixava dúvidas de que há muito não sentia o calor do sol.

Também pudera. Chovia incessantemente há meses. Embora ateu, passara a ter epifanias religiosas. Novo dilúvio! E não havia arca para tantos pecados. Mas quer saber? Foda-se. Salvação é para quem sente culpa. E este nunca foi o caso.

O caso é que mora num sítio distante 300 quilômetros da cidade mais próxima, porém a única via estava intransitável. E se não bastasse, todas as pontes desta estrada foram engolidas pela violência das correntezas dos rios que a tudo arrastavam. Não havia sinal de celular. Estava totalmente isolado e incomunicável. Mas não, não era isso que lhe afligia.

Não havia o que comer há semanas. Sentia fome. Esta já se acumulava feito a água. Fome é acúmulo às avessas. Talvez o mate em breve. Mas, enquanto isso, ela o consome. Porque esta, acima de todas, é a inglória função da fome. Colocar o indivíduo numa condição qualquer aquém da humana. Não por acaso encarar o faminto é tão desconfortável, pois, de sua boca, bem como de cada poro e orifício, o odor de nossa desumanidade emana.

E quer saber? Foda-se. Caso encontrasse um faminto agora, em vista das atuais circunstâncias, o devoraria sem nenhum remorso. Delírio! Ora, que outro faminto viria ao seu encontro neste temporal? Enfim, apesar de absurdamente perturbadora, não era a fome que lhe atormentava. Tampouco a tormenta.

Corpo febril. Calafrios intensos. Algo corrói o âmago deste pobre ser a ponto de lhe tirar completamente o sono. Nem sequer um cigarro ou um conhaque. Que seja! Depois de uma vida ébria, talvez a morte o queira sóbrio. Nada contesta, apenas contempla atônito o tempo minguante que lhe resta.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA Uma gargalhada ecoa no vazio da sala. Uma risada longa e sincera, que trazia consigo gotas e mais gotas daquela saliva espessa, que vez ou outra se dependurava na boca murcha ou na barba seca e ia se esticando até não poder mais. Que cena deprimente. Mas quem há de julgar? Quem dera houvesse alguém pra julgar… Não sabia do que ria. Talvez fosse loucura. Então que seja! Ao menos a constatação de que pra lucidez há cura!

De repente, um estrondo. Uma parte do teto do banheiro fora ao chão. Eram as malditas infiltrações! Estas (mais do que a tormenta, o isolamento, a falta de pontes, a fome ou a insanidade) lhe deixavam possesso, aflito e insone. Estavam por toda parte. Paredes e teto a ruir. A casa derretia aos poucos feito um bloco de gelo. Pouco importa o lugar de sua cama, havia sempre uma goteira fria e insolente sobre sua testa. Sim, eram as infiltrações que lhe atormentavam. Mas não estas. Estas apenas lhe lembravam das outras que lhe ruíam de fato. Infiltrações na alma. Infiltrações que já ultrapassavam as paredes insubstanciais da metafísica e se faziam notar na carne. Infiltrações que mofam o ser e apodrecem a matéria. Infiltrações que afogam a existência.

*Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros,
e vive em Cuiabá desde 2010.

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