Existem aqueles livros que a gente compra e não sabe a hora em que terão utilidade, embora saibamos que um dia a dita chega. Pois bem, um deles teve a inesperada oportunidade de se mostrar útil e prático. Indo a São Paulo para fazer um curso em uma instituição privada de ensino, a título de capacitação, levei na bagagem “Rotas literárias de São Paulo”, de Goimar Dantas, para que me trouxesse subsídios e despertasse a curiosidade de percorrer alguns desses espaços repletos de memória. Resolvi começar pelo Cemitério da Consolação, em pleno centro da maior cidade da América Latina.

Impactado pela leitura das páginas do livro sobre o local, saí em busca dessa aventura em meio às ruas e quadras estreitas em que se elevam os jazigos de figuras ilustres do Brasil entre o final do século XIX e de todo o XX. Logo na entrada, uma placa indica o endereço de túmulos de famosos, divididos em três categorias, a saber: 1) Intelectuais, artistas e personalidades públicas; 2) escultores; 3) políticos. Como assim, escultores não são artistas? Políticos não são personalidades públicas? Mas deixa pra lá.

Anotei o endereço dos que me interessa visitar, baixei o programa para usar o QR Code também, mas não fiz uso de nada que me guiasse o instinto. Saí andando por todo o espaço, rua por rua, quadra por quadra, para ver o que acontecia, e foram três horas nesse passeio.

RETRATO DO BRASIL

O intelectual que pensou a tristeza brasileira, falecido em 1943 e enterrado por aqui, talvez não intuísse a que ponto chegaríamos com a excludência econômica, cultural e social. Em sua obra máxima, de onde esta seção faz uso do nome, Paulo Prado divide os escritos em quatro tópicos: A luxúria, A cobiça, A tristeza e O Romantismo. Vou partir dessa divisão para uma paródia sem limites neste obituário crônico que subscrevo a seguir.

A luxúria

Domitila de Castro Canto e Melo, mais conhecida pelo título de Marquesa de Santos, doou parte do terreno do Cemitério onde hoje se edifica a Capela, que logo se avista quando se vem pela entrada principal. Corre, à boca miúda, a ideia de que protegia as prostitutas da cidade. Tornada célebre por ter sido amante de Dom Pedro I, sua história fica um pouco à mercê dessa contingência. Fosse a Lei Maria da Penha mais antiga e ela não teria sofrido tantos maus-tratos do primeiro marido, de quem pariu uma ninhada de filhos. Quis a história que fosse diferente; mas que história? A ensinada nos bancos de escola até os dias de hoje?

Lola Brand e Guinendel Lubinska também estão lá, túmulos encetados pela estrela de Davi, que ajudam a lembrar do tráfico de mulheres muito comum na Europa do final do século XIX, patrocinado pela Zwi Migdal, uma espécie de sociedade judaica muito atuante no período. Nesse período, a prostituição na região da Santa Efigênia e no Bom Retiro era bastante comum. Mas nem só de prostituição se cultuava a luxúria em terras paulistanas.

Oswald e Mário de Andrade em suas “entourages” e beligerâncias protagonizavam situações interessantes; hoje estão ali, inertes, mergulhados em um profundo silêncio que a proximidade dos jazigos não perturba. Também Tarsila se faz presente e Alcântara Machado, protegido pelo seu Gaetaninho, que brinca ao redor das estátuas de Vitor Brecheret, escultor de maravilhosas peças, ao lado de outros tantos que transformam o local em um museu a céu aberto, vilipendiado, roubado em suas placas de bronze ao longo dos tempos.

Mário e Oswald de Andrade

A cobiça

O Brasil do século XIX, escravocrata, imperial e mesmo na insipiente velha república, território de poucos donos. O período da escravidão que formou a cultura cafeeira e que deu origem à família quatrocentona paulista está bem representado no espaço. Quer seja pelo rei do café, Geremia Lunardelli, que chegou a ter dezoito milhões de pés, antes do “crack” da bolsa de valores, em 1929; quer seja pela figura imponente de Adhemar de Barros, cacique político da Era Vargas; quer seja ainda pelos Condes Siciliano e Álvaro Penteado, do Barão de Antonina e da imponência do maior Mausoléu da América Latina, que guarda um pouco da memória do poderoso Matarazzo – equivalente a um prédio de três andares, construído com mármore e demais apetrechos vindos da Itália (ufa!).

A tristeza

Estão também ali os túmulos de Mario Zan, cujos direitos autorais até hoje contribuem para a manutenção do túmulo de sua ídola (sic), Domitila de Santos, Armando Bogus, eternizado pelos personagens de Seu Nacib e Zé das Medalhas, dentre tantos outros; Paulo Goulart, esse patrimônio de nossa cultura, cuja história se mistura com a da televisão e do teatro brasileiros; Anália Franco, educadora que criou mais de setenta escolas, de Paulo Emílio Salles Gomes, incentivador do Cinema Novo, que renovou a estética do audiovisual ao longo da ditadura militar; de Guiomar Novaes, que no dia 8 de março de 1979 foi homenageada pela Orquestra Sinfônica de São Paulo, com a execução de peças clássicas, durante seu enterro; de Paulo Vanzolini, com sua ronda abençoando a boemia paulistana. De Monteiro Lobato, que há dois anos teve seu túmulo depredado e de onde foram roubadas as suas cinzas, encontradas depois por um dos coveiros, atiradas nas proximidades, depois de verificada a caixinha como não tendo nada de mais precioso (para os ladrões, diga-se de passagem!).

Mario Zan

O romantismo

Estão por lá a campa de Rubens de Falco, o inesquecível Leôncio da “Escrava Isaura”, no tempo em que a confusão entre ator e personagem era muito grande, muito antes da Maria de Fátima de Gloria Pires, de Porcina, na pele de Regina Duarte, da Nazaré Tedesco, de Renata Sorrah.

Luiz Gama, figura ímpar, esquecida dos livros de história de literatura brasileira, agora resgatado com louvor pela pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), professora Lígia Ferreira, que levanta a voz para dizer que “foi o único intelectual, a única personalidade negra brasileira do século 19, a ter vivido a experiência da escravidão”. Em meio a isso tudo, pareço ouvir aquele que se intitulava um palhaço da burguesia a levantar a sua voz:

A felicidade anda a pé

Na Praça Antônio Prado

São 10 horas azuis

O café vai alto como

A manhã de arranha-céus

(ANDRADE, Oswald)

 

O retrato deste Brasil tem outros recortes. E neles ainda há espaço para lembrarmos da liberdade de imprensa, tão confundida hoje com expressão do direito de se dizer o que se quer, muitas vezes de maneira inconsequente, o que provavelmente irritaria a Libero Badaró. O Brasil de um Franco da Rocha, que proferiu a primeira palestra sobre Freud por aqui, em 1919 e um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise, sendo seu primeiro presidente.

O Brasil de um Casper Líbero, que não teve a fama do Chateubriand, em termos nacionais, mas que deixou marcas profundas na área de comunicação no estado de São Paulo. Caio Prado Jr., um dos grandes da “Formação”; Couto de Magalhães, essa figura emblemática e (até) caricata, presidente das províncias de Goiás, do Pará, de Mato Grosso e de São Paulo, tão cheio de histórias curiosas e surpreendentes. De Júlio de Mesquita e Júlio de Mesquita Filho – Bob pai e Bob Filho da imprensa paulistana. Referências de um Brasil que está se diluindo, no olvidar de um eruditismo que some das prateleiras das livrarias, dos bancos universitários, da cabeceira das camas dos indivíduos pensantes.

Julio de Mesquita à direita, com o rmão Ruy

Não me sinto mais velho do que há dez anos, mas dentro de mais quatro estarei tecnicamente na terceira idade. Não sei o que será de meus livros, já quase não há discos, do meu pensar, dos livros que tiver escrito até lá. Meus caderninhos de anotação saberão contar as coisas que as faturas do cartão de crédito ainda não registram. Que venham muitas experiências, passeios, antes daquilo que insistem em denominar, folcloricamente de a última viagem. O título desta crônica é uma homenagem a Luís da Câmara Cascudo que entendia como ninguém a importância do folclore na cultura tupiniquim.

 

REFERÊNCIA

DANTAS, Goimar. Rotas Literárias de São Paulo. São Paulo: SENAC, 2014.

 

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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