Não, nunca lhe contaria que tudo havia começado nas aulas de violino, com o professor Ramon dedilhando acordes e pizzicatos na pauta de minha pele… (ARNAUD, 2012, p. 175).

Voltar à literatura de Marília Arnaud foi como saborear pelos olhos uma prosa líquida que se dissolve no palato quente, enquanto os olhos ouvem o que a narrativa tem a dizer. Pareço auscultar junto à antessala da narração os segredos profundos que emanam do mergulho secreto no baú das lembranças deletérias que me consumirão. Já quero adivinhar um lugar ao sol. “Todas as vezes que erguia a tampa do baú, os olhos de vó Quela se alumiavam no reconhecimento daqueles objetos que, em sua desmedida solidão, contavam-lhe a própria história” (ARNAUD, 2012, p. 50).

São muitas as passagens de “Suíte de silêncios” em que o ritmo decantado da escrita me vem como poesia. E as intermitências dessa linguagem densa, porém, lírica, me banha de uma melancolia plena quando me identifico com a poética gauche de um certo Carlos para quem “… uma rosa se pertence, pura e íntegra, toda senhora do seu perfume em meio à aridez de um asfalto, ao desalento de um bloco de concreto” (idem, p. 64).

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

As quebras narrativas, pausas intermediárias nessa partitura, compõem o arco da personagem mesclando-se ao toque mágico da menina de nove anos que respira “… esse som que me espia e me faz parar de respirar por alguns segundos, quando estou deitada em minha pele, esse silêncio concentrado é a música de Deus, do seu piano de cauda, um noturno de infinitos acordes que ele começou a compor há muito tempo, quando o tempo sequer existia” (idem, p. 75).

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

E o instrumento ganho de seu professor, iniciador em rituais silenciosos, que certa música de fundo vai moldando, melopeia fantasmática que impede a maturidade espontânea de se conhecer, promove o encontro com o instrumento de cordas e seu arco que se estende de um lado a outro enquanto a sinfonia silenciosa se repete. O toque animalesco descrito poeticamente de encontro ao “aroma aveludado da terra molhada pela chuva, invade-me o ranço mineral das entranhas do rio, um cheiro acre, espesso, de raízes maceradas, frutas maduras, secreções humanas” (idem, p. 93).

Os reinos animal, vegetal e mineral, cravados acima, se mesclam na composição herética de um gôzo incapaz de conter a imagem de que “Deus deve viver no coração do silêncio” (idem, p. 106). Mas ele está vendo. Até porque “Se a música tinha alma, então, meu pai era Deus” (idem, p. 109).

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

E a ausência da mãe, com suas unhas pintadas e o porte galante de quem abandona a família por não caber mais na partitura, por se querer regente de seu próprio musical, parece vaticinar que “A vida passaria a ser um palco vazio, os instrumentos recostados às paredes, as partituras repousando em suas estantes, a música se fazendo da ausência de sons, uma suíte de silêncios, a longínqua música de Deus” (idem, p. 132). Se nas escrituras sagradas o início era o verbo, para Duína, “No princípio era a música, e a música estava com meu pai, e a música era meu pai” (idem, p. 142).

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

Mas com o tempo, a música passou a ser o professor de violino, enquanto o pai curtia sua fossa almiscarada pelo cheiro de outra mulher, a quem a menina vê, de roupas menores, de peitos saltando para fora da roupa decotada demais. O sofrimento do pai o transforma em um ser avesso aos relacionamentos humanos. E a criação da menina fica um pouco à mercê da sorte. “Aquela ausência tornou-se um solfejo contínuo e avassalador a ressoar dentro dele, um lamento de oboé perdido na amargura de suas vísceras, um canto de sereia que reboava em suas inconsoláveis artérias, esmagando-o, impedindo-o de ouvir o mínimo apelo que viesse de fora” (idem, p. 147).

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

A tragédia humana anunciada na desintegração da família que não soube de recompor. A avó moralista, o pai ausente, uma sinfonia em desarranjo, para a qual a escritora busca campo semântico na área da música para contemplar a escrita. Pareço enxergar as pautas e algumas variações para o mesmo tema do amor, da saudade, do abandono. “Onde, a graça de Deus, se me crescem no peito o aperto e os sibilos, o ar em lugar nenhum, uma invivel mão em punho metida no fundo da minha boca?” (idem, p. 154).

É de se reparar o ritmo nesta última citação, a partir da alternância de sílabas átonas e tônicas que provocam um efeito de movimento com altos e baixos, sem a leveza de um la-ia-la-ia, um melódico condicionamento dos sons. Penso que, apesar de minha ignorância musical, há certa demarcação simbólica nessa harmonia provocada pelos fonemas empregados, o que me lembra o som do staccato forte, como um contrabaixo rugindo por trás de uma guitarra que insiste em se fazer presente.

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154).

Vou até a Wikipédia para uma consulta rápida e leio que “O staccato ou «destacado» — designa um tipo de fraseio ou de articulação no qual as notas e os motivos das frases musicais devem ser executadas com suspensões entre elas, ficando as notas com curta duração. É uma técnica de execução instrumental ou vocal que se opõe ao legato”.

Sinto a necessidade de compreender o que seria o legato. Pois voltemos à enciclopédia: “O legato consiste em ligar as notas sucessivas, de modo que não haja nenhum silêncio entre elas. É uma linha curva que se coloca acima ou abaixo de várias notas no trecho musical a ser executado ligado, sem interrupções dos sons”. É isso.

“Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e a do Divino Espírito Santo” (idem, p. 154). Refrão de uma litania com a qual convivo diariamente, caminho entre a leitura e a escrita, vivo a vida adorando os espaços de silêncio, constituintes de minha liturgia. Aprendo com este primeiro romance de Marília que “A fala de Deus era o silêncio” (idem, p. 187).

Finalizo novamente com a Wikipédia que, por muito tempo, acusei de prestar um desserviço à cultura humana: “os instrumentistas de arco deverão efetuar um único movimento contínuo com o arco”. Dos nove, passando pelos quinze anos e chegando à idade adulta, o arco da personagem é construído respeitando o que Duína mais gostava, pelo que pude perceber: “ Se me faltassem as lembranças, estaria disposta a mendigá-las, de esquina em esquina, prato na mão” (idem, p. 9).

 

REFERÊNCIA

ARNAUD, Marília. Suíte de silêncios. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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