Dia desses fiz uma postagem falando dos livros que lerei em fevereiro e março deste ano e a artista da palavra e professora paulista Flávia Helena me pediu para que, após a leitura de “Como escrever um romance”, de Miguel de Unamuno, opinasse sobre a validade ou não da mesma. Disse a ela que o faria com prazer. Eis que, após o advento, resolvi escrever uma crônica para dar conta de tal opinião.

Primeiro quero dizer que a edição é bem interessante, Gostei do formato, do papel, do projeto gráfico como um todo. Livro bem cuidado pela É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. A publicação de 2011 traz a público este curioso libelo sobre a arte da escrita e sua (meta) visão sobre o ato de escrever. Registro o cuidado do tradutor e também do editor em manter referências a versões anteriores, a fim de que o pesquisador não se perca no labirinto típico de traduções que muitas vezes embotam o original com dúbias informações. Esse olhar para dentro da escrita dos anos 1920 traduzidos para o momento histórico atual espalham certos jorros de luz onde algumas sombras insistem em permanecer.

A introdução é de Paul R. Orson que coloca o leitor a par do que trata a obra em questão. Ao comentar a estrutura e ontologia do texto registra que

O núcleo central […] consiste de uma narrativa autobiográfica das condições de espírito em que o autor se encontrava no inverno e no verão de seu primeiro ano de residência na França. Nesse relato, há a narrativa do romance autobiográfico que ele havia pensado em escrever sobre seu desterro, mas não se trata de uma narrativa que é simplesmente contada, mas de um romance que vai sendo escrito à medida que ele conta como iria escrevê-lo. Nesse romance “hipotético”, aparecer outra narrativa, a de um romance lido pelo protagonista fictício – mas autobiográfico – da narrativa intermediária (ORSON, 2011, p. 10-11).

As três narrativas que compõem o acervo são complementares e se encaixam como a metáfora das caixinhas chinesas em que uma se deposita dentro de outra e por fim uma terceira, com nada dentro. Por ser um livro publicado em 1926, inicialmente na França, dez anos antes da sanguinária expedição militar espanhola, que levou ao poder o generalíssimo Franco, as questões de caráter político e histórico que servem de pano de fundo para Unamuno antecipam o clima do pós-guerra que assolou os corações europeus e acertou em cheio o espírito basco-espanhol dez anos depois. E pensar que muitos pensam no romance autobiográfico como conquista de uma anunciada pós-modernidade (ponto!).

O autor reflete sobre o fato de a publicação vir a lume inicialmente na França, e não em seu país. Mas adverte com propriedade acerca disso, afirmando não querer uma edição em espanhol primeiramente, dentre outras razões, porque em seu país “os textos eram submetidos a mais degradante censura militar, a uma censura ainda pior do que a de analfabetos, que odiavam a verdade e a inteligência” (UNAMUNO, 2011, p. 38-9).  As relações entre obra de arte e censura em regimes ditatoriais fez escola em todo o planeta, desde os tempos imemoriais, e se perpetua de maneira enfática onde a política de exceção se torna regra.

Jean Cassou, escritor e tradutor que se dedicou muito a autores latino-americanos, acerca de Unamuno lembra que “Existe algo de Santo Agostinho nele, e também de Rousseau, de todos aqueles que, absortos na contemplação de seu próprio milagre, não conseguem suportar o fato de não serem eternos” (CASSOU, 2011, p.43).  Em resposta a Cassou, Unamuno introduz sua escrita com um comentário ao escritor e crítico francês, dirigindo o olhar para o leitor:

E o romance? Se por romance, leitor, você entende o argumento, não existe romance. Ou – o que vem a ser o mesmo – não existe argumento. Dentro da carne está o osso e dentro do osso o tutano, mas o romance humano não tem tutano, carece de argumento. Tudo são caixinhas, as fantasias. E o que é verdadeiramente romanesco é como escrever um romance (UNAMUNO, op. cit, P. 68).

Percebe-se ao longo do texto que Unamuno não admitia qualquer tipo de censura, e o tanto que isso o admoestava; sobretudo pela limitação intelectual do censor. Vinícius de Moraes, nosso poetinha, disse, um pouco antes de morrer, que uma única coisa o incomodava em seus registros biográficos. Algo que fez e do que se arrependia profundamente: ter sido censor durante a Era Vargas. Quando a sombra dos procedimentos censitórios ronda o cotidiano da humanidade é preciso “estar atento e forte”, como nos lembra de maneira retroflexa Caetano Veloso.

Passo novamente a palavra a Unamuno para que discorra, querida Flávia, sobre esse emplasto que se contrapõe ao ranço autoritário que vem de lá, do nosso presente contínuo. E o faço com muitos nomes na lembrança, alguns que nem mais se encontram entre a gente para dar seus depoimentos.

Não posso tolerar, e talvez considerem loucura, que os carrascos se erijam em juízes e que o fim da autoridade que é a justiça, seja afogado naquilo que chamam de princípio da autoridade, e que é o princípio do poder, ou seja, o que eles chamam de ordem. Também não poso tolerar que uma burguesia aflita e minguada, por medo pânico – irrefletido – do incêndio comunista – pesadelo dos loucos de medo -, entregue sua casa e sua fazenda aos bombardeios que a destroem ainda mais do que o próprio incêndio (UNAMUNO, idem, p. 91).

Gosto de como o livro vai finalizando. Mas a imagem do Farenheit 451 não me sai da cabeça ao lembrar de bombeiros com funções invertidas. Um discurso antigongórico se afigura e se agiganta, embora elementos conceptistas sejam utilizados pelo escritor para combater a própria origem de tal pensamento. Para Unamuno, “todo leitor que, ao ler um romance, preocupa-se em saber como seus personagens vão acabar, sem se preocupar em saber como ele acabará, não merece que se satisfaça sua curiosidade” (UNAMUNO, idem, p. 107). Enriqueço minha compreensão da obra com a dúvida do que poderia estar dizendo. Será que esse “ele acabará” seria o leitor, ou o romance? Melhor parar por aqui, acho que o estilo gongórico está contaminando minha visão das coisas…

 

REFERÊNCIAS

CASSOU, Jean. Retrato de Unamuno, por Jean Cassou. In: Como escrever um romance. São Paulo: É Realizações, 2011.

OLSON, Paul R. Introdução. In: Como escrever um romance. São Paulo: É Realizações, 2011.

UNAMUNO, Miguel de. Como escrever um romance. São Paulo: É Realizações, 2011.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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