lembro que minha preocupação com os drones era mínima… até achei curioso como começaram a usar o dispositivo no modo “falante” para evitar aglomerações… isso foi no Rio de Janeiro e naquele momento não teríamos como imaginar o que estava por vir. penso que devia ter ligado para a minha mãe naquela noite, quando as operadoras ainda nos permitiam fazer ligações. não nos preocupamos mais com contas, o governo cuida de todas, sabe-se lá como, mas nos mantém ocupados para mantermos essa nova estrutura abastecida e funcionando… sei que ainda existem trabalhadores que podem viver ao ar livre, mas devem ser poucos, afinal, até as lavouras foram automatizadas e um único funcionário pode programar e monitorar tudo, do cultivo à colheita… o lado bom é que escuto os pássaros que vivem na pequena floresta atrás do meu prédio. lembro que antigamente, antes mesmo de ter adotado minhas duas gatas, eu dava frutas para os passarinhos. um dia eu os vi na varanda de casa e resolvi deixar mamão e bananas… no outro dia acordei com as frutas totalmente destruídas pelas bicadas esfomeadas. não temos mais acesso à Internet, o que temos hoje é um sistema do governo, que remotamente modificou todos os dispositivos dos cidadãos, nos tirando totalmente do controle de nossas vidas… ou do que achávamos que tínhamos controle… as câmeras de celulares e computadores servem para nos conter e nos avaliar, com a ajuda dos drones, que cerceiam o espaço externo… penso que se todos os prédios fecharam, os funcionários do governo, em todas as áreas, permanecem onde estavam, então médicos e enfermeiros devem estar nos hospitais, mantendo-os em funcionamento… mas qual foi o alcance dessa mutação do vírus? estariam todos imunes? não, muitos devem ter morrido ou sucumbido à loucura do enclausuramento. eu contei todos os grãos de feijão que tinha em casa e racionei em pequenas porções. eu tinha, orgulhosamente, mais de mil grãos de feijão, e em menores quantidades, lentilha e ervilha. até cheguei a cogitar a hipótese de escambo por outros produtos que eu ansiava, como café ou chocolate… mas não temos contato com os outros moradores. até se cantarmos somos identificados pelos drones que se botam de vigília em nossas janelas. no começo ainda podíamos ouvir as panelas batendo, todos os dias, no mesmo horário, 20h30, mas depois, pouco a pouco, elas foram sumindo… tenho dúvidas se as pessoas foram “impedidas” pelos drones, recolhidas, elas ou as panelas, ou mesmo, se apenas cansaram de bater em vão e protestar por melhores condições de vida… a verdade é que realmente… o ser humano se adapta a tudo.

o meu campo de acesso é também a minha estação de trabalho remoto, é por isso que entendo que outros trabalhadores devem estar em presença física em algum lugar, desenvolvendo alguma atividade da qual eu não tenho conhecimento, e talvez não tenha nunca… quando penso em governo, também não sei se devo me ater ao que até então existia no mundo, não sei se o governo é o mesmo como o conhecíamos, se está dividido em esferas, ou se é ainda baseado no estado-nação… chego a conjecturar que as grandes corporações podem ter tomado conta de tudo quando o momento se mostrou conveniente… afinal quem mais faturou com a crise? as empresas de tecnologia que vendiam os equipamentos e ferramentas de segurança para esses mesmos governos… o que eu sei é que muitas teorias da conspiração surgiram antes de perdermos nossos acessos, e a grande maioria estava ancorada na realidade, em fatos… é fato que a coreia conseguiu contornar a expansão da doença através de aplicativos no celular dos cidadãos, onde podia monitorá-los, seus passos e as pessoas com as quais se relacionou, formando uma intrincada teia de acontecimentos dispersos, e reunindo todos os dados possíveis. penso que muitas notícias não chegaram a nós nos momentos anteriores ao lockdown… lembro de uma informação veiculada em jornal sobre testes de segurança feitos por outros países, enquanto os estados unidos tentavam conter a proliferação do vírus… aquele era um indício de que tudo mudaria mais depressa do que prevíamos… foi um dos inúmeros indícios. e agora, em perspectiva, penso que todos os sinais do que aconteceria no mundo estavam ali, e nós é que não soubemos ler, talvez sejamos ingênuos demais… outro pensamento recorrente é sobre as ilusões que alimentamos de conseguir vencer o sistema capitalista, a concentração de renda, a desigualdade, a miséria… nós chegamos a dialogar sobre um mundo mais justo e harmônico, respeitando todas as espécies e formas de vida… mas enquanto pensávamos em utopias, os gigantes se moviam depressa para assegurar o poder… não penso que se trata apenas sobre riqueza material, mas sobre poder. a sede de ditar os rumos da humanidade no planeta Terra. essa sede nos trouxe até aqui.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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