Quem foi jovem lá nos idos de 1982 talvez se lembre da série de televisão “Cosmos”, que passava todo domingo no Fantástico, tarde o suficiente para que os adolescentes tentassem negociar com os pais um lugar no sofá. O apresentador era o astrofísico Carl Sagan, um homem de cabelos estilo a-vaca-lambeu, que usava uma blusa vermelha de gola alta de gosto duvidoso (vestuário mó sucesso entre os intelectuais da época!). Com uma voz quase sensual e didática impressionante, dava início a incrível jornada na “nave da imaginação”, rumo aos confins do espaço-tempo, para desvendar os grandes mistérios das ciências naturais.

Não sei se nos anos 80 as “mina pirava” com tudo aquilo, mas conheço uma que acabou sendo fisgada pela “palavra da salvação” da ciência: minha mãe. A então adolescente de 17 anos se preparava para entrar na faculdade, um privilégio de poucos, ainda mais naquela época. Uma bela noite, absorta no tapete da sala, em frente à televisão preto-e-branco cheia de botões enormes, ela se deparou com o astrofísico. Desde então, descobriu o que queria ser: cientista.

Carl Sagan

Carl Sagan talvez seja uma das figuras que melhor despertou a paixão pela ciência nessa geração nascida durante a corrida espacial. É inquestionável a contribuição que ele teve para que as ciências exatas e naturais – que englobam biologia, física, química, matemática… – pudessem transcender os muros elitistas das universidades. Hoje, a divulgação científica encontra-se difundida em praticamente todos os meios de comunicação, e a internet se mostra um terreno bastante fértil. Mas o que é essa tal “divulgação científica”? E será que as outras ciências, como as sociais e humanas, não entram nessa? Então senta aí que lá vem textão.

Uma breve história do tempo em que tudo isso aqui era mato

A divulgação da ciência não é uma prática necessariamente contemporânea. Segundo as professoras Suzana Mueller e Rita Caribé, no artigo “Comunicação científica para o público leigo: breve histórico”, o acesso a esse conhecimento teve início ainda na Europa do século XV, junto com o desenvolvimento da ciência moderna e da imprensa. O pintor Leonardo Da Vinci, por exemplo, afirmava que “o dever do homem da ciência é a comunicação” – do homem com H mesmo, porque se já é difícil pra mulher em 2018, imagina em 1400 e bolinha…

O Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci

Pulando para o Iluminismo, no século XVIII, registros mostram que já ocorriam diversos “shows” científicos nos anfiteatros europeus, com direito a demonstrações de máquinas, fenômenos elétricos e mecânicos, palestras sobre física, química e medicina. O século da Revolução Francesa também foi responsável por personagens como Marat (1743-1793), um dos líderes revolucionários, que realizou inúmeras palestras sobre óptica e eletricidade, todas voltadas para o público chamado de não-especializado, ou leigo.

O jornalismo científico começa a tomar forma a partir do século XIX, com o surgimento de uma série de publicações científicas, como o American Journal of Science (1818), a Scientific American (1845), Nature (1869) e Science (1880). Os museus também começam a desempenhar papel importante. Mas a professora Sarita Albagli, no artigo “Divulgação científica: informação científica para a cidadania?”, afirma que nesse período há ao mesmo tempo uma aversão de cientistas pela comunicação de seus trabalhos por meio dos jornais populares, por conta do estilo sensacionalista que muitos adotavam.

Cosmos da revolução tecnológica e o astrofísico que virou meme

Com a popularização do rádio, da televisão, do cinema e da imprensa, o século XX se transformou na era da informação. A tecnologia revolucionou o modo de se fazer divulgação científica, como enfatizam as professoras Suzana e Rita, e possibilitou a abertura de novos caminhos. A internet então nem se fala. Podcasts, canais no youtube, blogs… É um verdadeiro universo com infinitas possibilidades, onde a nossa querida nave da imaginação pode explorar os cantos mais remotos. E onde até um astrofísico pode acabar virando meme. Ui!, deGrasse.

Com a informação ao alcance de um dedo, agora não precisa mais ser um grande especialista pra se popularizar a ciência, nem atuar como mero tradutor do conhecimento científico. Lógico que esse turbilhão de dados precisa ser tratado com cautela, pra não se afogar em tanta informação e acabar ficando sedento por conhecimento – parafraseando o biólogo Edward O. Wilson. Os processos democráticos e cidadãos são essenciais para abrir esses diálogos.

O mundo assombrado pelos demônios da ciência masculina, branca e exata

Deixando à parte a discussão sobre a diferença entre os conceitos de comunicação científica, divulgação e difusão científica, o fato é que existe uma preocupação cada vez maior nos últimos anos em popularizar as ciências. Alguns nomes, além de Carl Sagan, já podem soar familiares aos ouvidos de alguns, como Stephen Hawking, Neil deGrasse Tyson (que foi pupilo do Sagan e hoje apresenta o atual Cosmos), Edward O. Wilson, Richard Dawkins (nome que me dá arrepios), David Attenborough, Marcelo Gleiser, Drauzio Varella… Mas você notou algo estranho aí?

Pois é, nenhum deles é mulher. E muito menos das áreas de ciências humanas e sociais. Negro então? Bom, o deGrasse salvou nessa, mas você consegue pensar em outro nome? E os LGBTs? Indígenas? Ribeirinhos? Assentados? Países do sul? Hahaha, faz-me rir. Então quer dizer que temos as ferramentas necessárias, muito mais acessíveis e literalmente ao alcance das nossas mãos, e mesmo assim todos esses grupos sociais e esses outros campos científicos ainda são extremamente invisibilizados? Houston, temos um problema.

Os conhecimentos de populações tradicionais, que muitas vezes inovam criando tecnologias de caráter social, ou alertam sobre o agravamento dos problemas socioambientais, também são deixados de lado. Mas se a maior parte da sociedade é marginalizada, não dá pra dizer que estamos fazendo de fato uma boa divulgação científica, dá? Pelo menos não se queremos lutar em prol da popularização dessa área tão plural, mas ao mesmo tempo ainda tão homogênea.

Voltando aos homens brancos, vale lembrar que recentemente temos visto uma onda de cientistas divulgadores da ciência dessa classe que apresentam posições, digamos, um tanto controversas, pra não dizer o mínimo. O biólogo Richard Dawkins e o neurocientista Sam Harris, por exemplo, são conhecidos por sua forma agressiva de fazer ciência, principalmente no que tange o assunto religião. Esses “novos ateus” fazem um desserviço à sociedade ao atacarem pública e cegamente determinadas religiões (no caso deles a islâmica).

Não sei se o melhor termo para usar aqui nesse caso seria islamofobia, mas é certo de que eles usam a fama de “cientistas céticos disseminadores da verdade” para espalhar mensagens de intolerância contra um grupo historicamente marginalizado, com base em argumentos pseudocientíficos. Eu diria que eles não passam de fundamentalistas ateus. E é no mínimo perigoso quando esses homens utilizam a ciência como suporte para as falácias que espalham.

O universo numa casca de noz tudo

Acho que nenhum dos mais famosos divulgadores da ciência conseguiu cumprir completamente o objetivo. De maneira geral, vejo que muito material de divulgação científica ainda é pouco acessível para um público mais amplo. Será que a tia da limpeza que nunca teve a oportunidade de um estudo formal entenderia Cosmos, por exemplo? Eu, que sou jornalista, fiquei perdida em muitos conceitos da série e me achei até burra por isso. Tem algo errado…

E cadê a popularização da Antropologia, da Sociologia, da História e da Geografia? Em tempos de mudanças climáticas, de Trumps, Bolsonaros, Brexits e do crescimento de fundamentalismos, mais do que nunca precisamos difundir os modos de pensar das ciências humanas e sociais e parar de separar a ciência da sociedade, da política, da economia. Tudo está interligado. O conhecimento científico é produto de fatores sociais, portanto não é neutro nem imparcial e deve ser questionado e melhorado, em busca de soluções de problemas.

Fica aqui um convite para que os cientistas desçam do púlpito da hierarquia científica dura e para que seja formada uma verdadeira aliança entre todas as ciências, para ir até mesmo além da formal interdisciplinaridade. É preciso também indisciplinar para provocar mudanças.

Bilhões e bilhões de possibilidades

Eu sei que é extremamente difícil transmitir o conhecimento científico de forma que as pessoas que não são especialistas no assunto entendam claramente. É um dos maiores desafios de quem é da área e eu compartilho desse desespero. Fora conseguir conciliar a própria pesquisa científica com a divulgação… é um puta trampo, não é para os fracos. Precisa de investimento, de tempo, dinheiro, de interesse político e até mesmo empresarial.

Os jornalistas entram como uma oportunidade de parceria, mas não sem preconceitos e rixas. Sair da bolha é um primeiro passo e acredito que a mudança já começou. É claro que os esforços para a popularização da ciência envolvem processos extremamente complexos. É necessário também levar em conta diversos fatores culturais, raciais, identitários, de gênero, as crenças e valores enraizados em cada indivíduo.

Uma coisa é certa: a nave da imaginação não pode estacionar. O combustível que a move é um misto de curiosidade com criatividade, pensamento coletivo e vontade de transformar o mundo a nossa volta. Embarcaremos nela com os pés no chão e a cabeça nas estrelas, sempre abertos às “bilhões e bilhões” de possibilidades que nos rodeiam rumo ao desconhecido, rumo às soluções que ainda estão por vir. Afinal, como diria Carl Sagan, somos todos feitos de poeira das estrelas. E estamos todos intimamente conectados.

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