O cheiro de plástico queimado sobe da Avenida 9 de Julho em forma de fumaça e atinge quem passa pelo viaduto na rua Martinho Prado, que corta o céu de quem está embaixo. A nuvem espessa sai de dentro do prédio abandonado e os pés calçados em um tênis adidas chamam minha atenção. Olho, fotografo, penso. O mundo é tão imenso e assim pessoas podem percorrer quilômetros sem se esbarrar, sem se tocar, sem se enxergar.

Uma vez minha irmã me disse que viver em São Paulo era um exercício de insensibilidade. Ela tem razão em muitos aspectos. E certas cenas me atravessam. A menina de dez anos fazendo o ponto de ônibus de morada para se refugiar do frio e da chuva. Uma mulher que lava as suas partes íntimas na água que corre livre pela rua Augusta. Um homem que monta sua cama todo fim de tarde em frente ao Instituto de Saúde. A mulher que abriga três cachorros em sua barraca.

No meu caminho, passo todos os dias pela Vanderleia, que insiste em montar sua casinha, mesmo que a polícia toda vez leve embora suas coisas tão arduamente conquistadas. Ela me ensina muito, me dá bom dia, grita de longe por mim, espalha sorrisos e pede abraços ou coisas de menina. Eu sei que não é muito, mas toda vez que eu retribuo, vejo o quanto um ato simples de olhar nos olhos é negado às pessoas que estão em situação de vulnerabilidade. Esses dias, o riso foi substituído pelo choro compulsivo, e entre lágrimas me contava do desentendimento com seu companheiro, que a teria agredido com um tapa no rosto. Ela dizia que ia se matar, que a vida dela não valia nada, e repetia “o que que eu tenho? Eu não tenho nada”, e olhava em direção à sua morada: uma barraca quebrada com um pedaço de madeira encaixado na parte de cima para fazer as vezes de teto.

O que você responde em um momento como esse? O que você responde pra alguém que, de fato, não tem nada? Só a sua alegria de, duramente, sobreviver. Enquanto eu recolhia minhas próprias lágrimas, sabendo que essa dor não me pertencia, pedi pra ela respirar e beber água. Amanhã seria outro dia. Fiquei quase meia hora tentando acalma-lá e dar algum tipo de conforto. Só pude oferecer um abraço e segui meu caminho. Neste meio tempo, outra mulher se juntou a mim e disse que ela era o nosso Sol, que alegrava os nossos dias, que se não aguentava mais viver assim, precisava tentar parar de beber. Depois do discurso, foi atrás de ajuda desses atendimentos de psicólogos que atuam nas ruas.

Esse episódio me fez refletir sobre muitas coisas. Eu não tenho direito de reclamar sobre a minha posição social repleta de privilégios. Eu não tenho direito de não lutar pelas pessoas que precisam desesperadamente do mínimo de dignidade para ser e estar neste mundo. Eu não tenho direito de julgar as pessoas que estão em situação de rua por suas escolhas ou motivos. Eu não tenho direito de virar o rosto ou fechar o vidro para não ver a miséria humana. Eu não tenho direito de me calar diante de tantas injustiças. Eu não tenho o direito de me silenciar e invisibilizar essas pessoas. São mais de 15 mil pessoas vivendo na rua. Pessoas que tem suas coisas apreendidas pela polícia na vã tentativa de fazer com que saiam dos espaços públicos que ocupam…

Às vezes o que podemos fazer parece tão pouco, mas para quem não tem nada, isso pode significar tanto ou tudo. Então eu continuarei sorrindo de voltar para a Vanderleia, dando minha mão pra ela segurar enquanto me conta das dificuldades e dos problemas de viver nas ruas da maior cidade da América Latina, retribuir o seu abraço quando me pedir e sorrir porque hoje ela ganhou um radinho e estava ouvindo e cantando música. Me disse que não temos como viver sem canções e que deus abençoe quem deu este pequeno rádio portátil pra ela.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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