Terminou de enrolar seu baseado, enquanto o fogo consumia o carvão do incenso aceso. Já era parte do seu ritual. Chegar em casa, tirar os sapatos, deitar no sofá para enrolar o fumo no papel de seda. Essa hora do dia era difícil organizar os pensamentos, e pensava em demasia. Disso estava convicta. Na maior parte das vezes, suas ideias eram descartadas, sem qualquer serventia. Ideias melhores virão, pensava. Mas não vinham. E perdia a si mesma por não conseguir expressar em palavras tudo o que processava em sua máquina de pensar. Pensou em um quarto todo branco, vazio, no som de metal com metal, estridente, que reverberava ao fundo de sua alma. Mas que alma? Quanta constatação. O que dizer para um papel em branco? O que dizer que não vive mais no peito? Sem rimas, sem condecorações. Queria ser simples. A simplicidade de um chinelo de dedo parado em frente a porta trancada, esperando pelo dono para calçá-lo. Era uma impotência sem fim. O relógio nunca deixava de marcar as horas. Tic tac. De novo. E de novo. Como a espiral que descia em silêncio nos seus sonhos mais sombrios.

Tic tac.

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O cigarro queimou seu dedo, enquanto a fumaça subia para além daqueles pensamentos tão pequenos que guardava para si. Tudo guardava para si. Havia chegado a um estado que não permitia mais expressões de sentimentos, de ideias, de vontades. Tudo o que dizia voltava contra ela, assim como tudo o que fazia ou imaginava. Tudo se perdia. O cigarro continuou a queimar seu dedo, tão entorpecida nestes pensamentos aleatórios que não se deu conta que a brasa estava em contato com a sua pele fina…

Acordou como de um sonho e soprou o baseado. As cinzas voaram pelo sofá branco. Um dia poderia dizer que tudo era experimentação, arte, quem sabe as pessoas acreditariam. Já vivia tanto no mundo da Lua, como gostavam de dizer. O chefe, os pais, os amigos. Talvez não sentissem este não pertencimento, este des-pertencer. Talvez soubessem exatamente como é se sentir no padrão, moldado, na forma exata do que lhe pedem. Só que não para ela. Era tudo difícil, até respirar. A fumaça enchia seus pulmões e por um ou dois segundos sentia que podia ser e estar no mundo. Mas, tão rápido quanto suspirou, a fumaça saiu lentamente de sua boca formando círculos no ar que dançaram em frente aos seus olhos incrédulos, e assim, dissolveu na respiração, a sensação de pertencer.

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Expirou mais uma vez. E a fumaça subiu.

Tic tac. Tic tac.

Imaginava todas as histórias que não iria viver e imergia em seu sono profundo para não se desprender da fantasia que criava e recriava em sua própria cabeça para lhe satisfazer. Queria abraçar o mundo, mas os braços eram curtos demais. Permitiam, porém, que pudesse abrir a porta, e suas pernas dariam largos passos para a rua estreita. As árvores verdes balançavam ao toque do vento, convidativas a refletir o sol em suas folhas verdes.

Chorou sem lágrimas. Silenciou.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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