Sem rodeios, taxativamente, a jornalista Miriam Leitão afirmou: “O nome disso é censura”. E em seguida, relembra que já passamos pelo mesmo caminho na época da ditadura militar, quando “censores” elegiam o que seria permitido nas produções artísticas e culturais, nas publicações de jornais e revistas, nas televisões e propagandas institucionais. É para este tempo tormentoso, de restrições às liberdades e garantias individuais, que o antigoverno bolsonarista insiste em nos arrastar – com velocidade assustadora e eficácia imediata. Editais são suspensos, peças são canceladas, exibições de filmes são proibidas. Este é o cenário atual. Parece 1964, mas é 2019.

Roberto Alvim, atual diretor da Funarte, garante que “é curadoria, não censura”. O mesmo homem que foi capaz de chamar a dama do teatro brasileiro, a grande Fernanda Montenegro, de sórdida, simplesmente por posar em uma fotografia representando uma bruxa, prestes a ser queimada em uma fogueira de livros. A vida que imita a arte ou a arte que imita a vida? Lembro de Fahrenheit 451, o filme onde livros são proibidos e as pessoas vivem alienadas consumindo os conteúdos televisivos. Os livros são queimados pelos “bombeiros” – as casas têm proteção ao fogo e a única função destes homens é queimar, queimar, queimar, qualquer coisa que se possa ler.

Aos 90 anos, Fernanda rebate: “Nenhum sistema vai nos calar”. Sabe da potência da arte para as transformações sociais. E ao ser atacada, desencadeia uma rede de apoio e proteção, contra o desmantelamento da cultura, contra a ignorância generalizada, contra o autoritarismo desenfreado sobre nossos corpos, ideias e ideais. O antipresidente mente e diz que o veto a obras culturais não é “censura”, mas sim “preservar valores cristãos”. Direitos fundamentais são atacados e rasgados como se fossem uma fina folha de papel (e se pensarmos bem, o que é a Constituição Federal, que nos assegura todos estes direitos – muitos deles sequer alcançados na realidade – se não um amontoado de folhas a qual atribuímos sentido?).

O filtro ideológico proíbe expressões políticas, críticas, questionamentos, reflexões. Os reflexos são sentidos pela classe artística, que veem as portas serem fechadas. As mesmas portas que foram duramente abertas, agora se fecham para as possibilidades criativas. De um lado, o apoio estatal míngua, do outro, as empresas privadas preferem se encolher diante do acelerado desmonte das políticas públicas.

A potência do texto e do argumento da peça Caranguejo Overdrive me arrematou logo de cara. Desta experiência, vivenciada graças ao Palco Giratório do SESC Arsenal, escrevi uma crônica teatral, inspirada pelos movimentos e construções amarrados em um sentido complexo e amplo pelos atores e autores. Premiada e celebrada, em cartaz há anos, Caranguejo Overdrive foi um dos últimos e recentes alvos da censura desenfreada. A apresentação, patrocinada pela Caixa, foi cancelada sem maiores explicações. Se explicações são cobradas, dizem sem cerimônia que o que objetivou a decisão foram questões pura e meramente técnicas. Mais um conto do vigário a povoar a imaginação da sociedade brasileira.

É claro que o teatro será cerceado. As artes cênicas são uma das trincheiras da resistência, estão na linha de frente da batalha contra o obscurantismo. Aos 91 anos, Zé Celso, do Teatro Oficina, segue representando, atuando e trabalhando incessantemente para manter viva a chama do teatro. Com a releitura de Roda Viva, sem nenhum tipo de apoio, apenas com a fidelidade do público, a peça que transcendeu o período ditatorial, lotou o Teatro Oficina em todos os dias de apresentação. Isso demonstra a força da arte.

Foi a primeira vez que pisei os pés neste santuário profano das artes cênicas. Ali, a história do Brasil contada em perspectiva, com símbolos e signos que regem a nossa cultura, a nossa noção de país. O diabo e o anjo digladiando em torno do prometido, aquele herói nacional, alçado à condição de santidade, mas que incorpora todas as falhas humanas, toda a complexidade que é ser e estar no mundo. Eles cantam, dançam, sapateiam. Contam o que já sabemos com sátira, com fina ironia. O herói decadente que só quer salvar a si próprio. O povo que o consagra e acredita na imagem construída para ganhar publicidade, mas que ao olho nu, em quatro paredes, é tão perverso e abissal quanto qualquer outro ser humano que esteja só em meio à suas paredes.

Roda Viva desafia o senso comum, eleva o teatro ao seu ponto mais alto, escracha, faz crônica com as palavras, é quase uma reza, um transe, um iluminar de cabeças ocas. As formas e figuras permeiam o imaginário popular ao recontar a história do Brasil, e avançamos para além da escravidão, da dizimação das populações indígenas, do avanço do agronegócio, do veneno infiltrado em nossas águas e alimentos, do sangue derramado de tantos homens e mulheres que aqui nasceram ou morreram. Eu poderia discorrer horas e horas sobre esta apresentação, mas seu sentido captou em mim um outro sentido tão subjetivo que as narrativas se embaralham e perco o fio da meada.

É preciso ver, é preciso ver para crer. É teatro de verdade, de resistência, eles anunciam. E tudo o que é proibido e condenado está lá: os corpos que se amam e se lambuzam de prazer, o álcool, o beijo entre dois homens, a vergonha desnuda, a mulher que rompe com o sistema patriarcal, um singelo cigarrinho de maconha que inebria com o cheiro a infiltrar todos os nossos poros.

Zé Celso, do alto da sua idade, levanta a plateia, sua voz é forte, e ao encerramento convoca todas as pessoas a entoarem canção, indo em direção à rua, ocupando o espaço público, onde somos brindados por uma Lua cheia e pela comunhão daqueles que acreditam em viver pela arte e com a arte. Se existe imagem mais poética do que essa, para traduzir os acontecimentos contemporâneos, eu ainda não a vislumbrei.

Erguemos flores em direção ao astro que ilumina a noite em meio à escuridão.

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