A primeira vez que me deparei com sua fala, o ambiente era sóbrio, institucional, mais precisamente no teatro do SESC Arsenal em Cuiabá. Ele estava no palco, sentado em uma poltrona, com acessórios característicos da sua cultura, e quebrou o tom sério com uma ou outra colocação inusitada. A sua demonstração proporcionou um misto de descontração com certo embaraço em perceber o quanto o nosso olhar é colonizado e colonizador. Pouco mais de um ano depois, tivemos um segundo encontro, dessa vez, virtual. Nos conectamos pelo Skype e pelo vídeo pude “conhecer” a sua oca, em meio a mata verde em um dia ensolarado em Ilhéus na Bahia. Feito o primeiro teste, nosso encontro de fato ocorreu à noite daquele mesmo dia, mas desta vez, a conexão não nos proporcionou a imagem, só a voz, que escutei enquanto ao fundo, as ondas do mar quebravam-se em um constante devir nas areias da praia.

A ideia para a entrevista era uma reportagem para o curso de pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP), em Mídia, Informação e Cultura no Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação, que tratou sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil e a luta em oposição ao estado. Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e doutor em História da Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP), Casé Angatu da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença de Ilhéus (BA) abriu as perspectivas sobre o momento atual no país, de instabilidade política e da necessidade de resistir frente aos retrocessos nos direitos indigenistas.

Infância Ikpeng, Xingu, Mato Grosso – Fotos gentilmente cedidas para esta reportagem pelo fotógrafo José Medeiros – Projeto Já Fui Floresta

Do distanciamento das nossas vivências, em nossa conversa, foi possível sentir na pele aquilo que parece descolado da realidade da sociedade em geral. O corpo é a terra, a terra é o corpo, a água, as matas, os bichos, são parte daquilo que se é, um não vive sem o outro. A relação com a terra é a da própria existência, resistir na terra é resistir no próprio corpo. É a terra que guarda a morada de todos os espíritos ancestrais, de todo o ensinamento repassado de geração em geração, através da oralidade, cantando e contando histórias e lendas, que trazem um conhecimento tão antigo quanto esta mesma terra.

“Não éramos donos, nós somos a terra, não éramos donos do Brasil, éramos o Brasil, ou aquilo que passou a se chamar Brasil. A nossa cosmologia é naturalmente, mesmo não sendo ideologicamente, anticapitalista, antiburguesa, antiestado. A nossa forma de se relacionar é in natura, claro que muitas coisas do universo não indígena também foram reapropriadas por vários parentes. Tem índios que se reelaboram dentro da lógica de produção rural, burguesa, capitalista, agora na sua natureza, digo não só como índio, mas como historiador, somos naturalmente libertários. É por isso que muitos perguntam por que índio quer tanta terra se não produz e a ideia não é produzir no sistema de produção burguesa mercantil, mas de outra forma. Por isso digo que é a nossa cosmologia, a nossa relação com a natureza, a antropologia chama de animismo ou autogestão. Nós já somos tudo isso, sem sermos declaradamente tudo isso. Por isso que alguns movimentos sociais que são contra hegemônicos, decoloniais, libertários, anarquistas, por vezes se aproxima porque está naturalmente na nossa forma de ser, de se relacionar com a natureza, pensar coletivamente e contra hegemonicamente, é o que faz ter ideias libertárias”, explicou sobre a relação do índio dentro da lógica capitalista de mercado.

Hoje no Brasil vivem 305 povos indígenas, com uma população de mais de 900 mil pessoas, que falam 274 línguas diferentes, distribuídos em todos os estados, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010.

Máscara usada para o ritual Moyngo – Xingu Aldeia Moygu povo Ikpeng – Fotos gentilmente cedidas para esta reportagem pelo fotógrafo José Medeiros – Projeto Já Fui Floresta

Uma história forjada em sangue

Este desconhecimento da relação intrínseca dos povos indígenas com a sua terra ancestral é parte do sintoma de uma doença a que todos estamos submetidos enquanto sociedade colonizada e colonizadora. Somos colonizados, nossa história foi moldada pelas grandes potências, as terras foram invadidas, povos foram escravizados e exterminados. A cultura destes povos foi subjugada, reprimida, aniquilada. O contato com o homem branco europeu trouxe doenças, morte, genocídio, etnocídio. Todo o saque realizado nessas terras, e em toda América Latina, transformou os países de primeiro mundo no que são. As nossas riquezas naturais e o trabalho forçado dos nossos povos compõem a base de todo o poder econômico do mundo dito desenvolvido. A descoberta da América Latina é o caminho traçado para o capitalismo. Esta é a constatação do jornalista uruguaio, Eduardo Galeano no livro “As veias abertas da América Latina”. A nossa história foi forjada em sangue, principalmente de índios e negros.

Casé Angatu – Foto: Silvia Villalva

“Costumo dizer que nós povos indígenas não temos rancor, mas temos memória. O maior dos golpes foi dado há 518 anos, com as invasões portuguesas e europeias, um golpe que vive se repetindo. Esse país já nasceu golpeado, nasce de um golpe que é a invasão e a constante histórica de mais de 500 anos tentando roubar as terras, não dos verdadeiros donos, mas daqueles que pertencem à terra. O Estado vive golpeando os povos indígenas, porque precisa negar nosso direito à terra. Os donos do poder sabem que temos o direito originário, congênito, ancestral e que precede ao direito da propriedade privada”, reforçou Casé.

E neste cenário, a instabilidade política que assola o Brasil desde o impeachment de uma presidenta democraticamente eleita, sem base jurídica para tal, contribui para um retrocesso ainda maior no que diz respeito aos direitos indigenistas. Para se blindar das investigações, o presidente golpista Michel Temer tem utilizado os interesses das bancadas no Congresso Nacional como barganha. A moeda de troca passa pelas emendas parlamentares liberadas a torto e a direito nos últimos anos para garantir a aprovação de medidas impopulares, como no caso da reforma trabalhista. Casé ressalta que no governo anterior, da presidenta Dilma Rousseff (PT), já havia um retrocesso grande, com a Kátia Abreu enquanto ministra da Agricultura, as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em que muitas passaram por dentro de terras indígenas, o novo Código Florestal, a usina de Belo Monte, que alterou não só a vida das comunidades tradicionais mas o curso do próprio Rio Xingu.

Foto: Acervo pessoal de Casé Angatu

“Quando coloca um Osmar Serraglio (PMDB-PR), um ruralista famoso no Ministério da Justiça, esse ministro libera no campo e aumenta-se o número de mortes. Quando se coloca ruralistas no Ministério da Justiça libera-se a morte. É um governo (Temer) de morte portanto”, observou Casé sobre a atuação do ex-ministro da Justiça, que foi substituído por Torquato Jardim.

A desestruturação das políticas indigenistas

A bancada ruralista no Congresso Nacional avança em sua pauta conservadora. Conforme levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) foram identificadas 33 proposições anti-indígenas em tramitação, que somadas às propostas apensadas por tratarem de temas semelhantes, ultrapassam uma centena. Destas 33 proposições, 17 buscam a alteração nos processos de demarcações de Terras Indígenas, caso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que repassa esta responsabilidade ao Congresso.

“Se olhar a própria Constituição Federal nos artigos 231 e 232, que foi um avanço em 1988, ela abre brecha para essa intervenção do Congresso. Não estou atacando o artigo, é um avanço, da luta e da mobilização dos povos indígenas e seus aliados, que fizeram valer esses artigos, mas eles abrem essa brecha. Dito isso, como que faz a resistência, primeiro é com nós mesmos: o índio resiste com o próprio corpo, com a própria vida, faz a própria demarcação. Fazemos ação direta desde quando eles existem, desde as invasões portuguesas, resistência é autodemarcação, é resistir no território. O que seria a autodemarcação? Retornar as terras que estavam nas mãos dos invasores. A outra, é o Acampamento Terra Livre, em Brasília, esse ano foi expressivo, as cenas de enfrentamento junto ao Congresso. São demonstrações de resistência, e é claro, os aliados. Precisamos da força dos aliados, e como isso acontece? Participando dos eventos que organizamos, ouvir o que necessitamos, essa forma de apoio é importante”, apontou Casé.

Povo Gavião Ikoloehj Ji-Paraná RO, Cacique Catarino – Fotos gentilmente cedidas para esta reportagem pelo fotógrafo José Medeiros – Projeto Já Fui Floresta

E os golpes continuam. A Portaria nº 303/2012 da Advocacia-Geral da União faz valer as condicionantes da Raposa Terra do Sol para todas as terras indígenas ferindo a autonomia dos territórios demarcados. O processo de demarcação da TI Raposa/Serra do Sol também teve outro reflexo, a Portaria nº 001/2017 da AGU, que oficializa a tese do “marco temporal”, trazendo mais insegurança jurídica. O texto do marco temporal estabelece que os povos têm direito à terra “desde que a área pretendida estivesse ocupada pelos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal”, em 1988. A portaria desconsidera o movimento migratório dos povos indígenas, que tiveram que abandonar seus territórios originários para sobreviver às invasões de suas terras e perseguições, como ocorreu no período ditatorial (1964-1985), pré-constituição.

Para mudar esta realidade a palavra de ordem é demarcação já, mas com autonomia e autoridade, observa Casé. “Se não vem outro governo e desmarca, como quase aconteceu com os Guarani de Jaguará. A terra demarcada e o governo usou de um truque, tiraram a demarcação, agora voltou a demarcar, mas se não discute estruturalmente garantia a esses direitos, eles são retirados. É o que o governo Temer tem feito, retirado todos os direitos conquistados anteriormente, porque ele é o novo presidente”.

Mas a desestruturação também é física e o desmantelamento de toda a estrutura da Fundação Nacional do Índio (Funai) tem acontecido de forma sistêmica. Não há carros, nem equipes e muitos profissionais têm sofrido ameaças constantes por apoiar a luta indígena.

Abismos estruturais

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com pouca distribuição de renda e muita concentração de riqueza. Não há taxação de grandes fortunas e os impostos pesam mesmo é no bolso do trabalhador. Os interesses econômicos e muitas vezes escusos se sobrepõem ao bem-estar social. Ocupamos o 3º lugar no ranking mundial de encarceramento. A maioria dos nossos presos possui o mesmo perfil: são homens, jovens, negros e pobres. Encarceramos a nossa juventude negra. A maior causa de prisão é por tráfico de drogas, mas o problema não é enfrentado em sua origem, apenas perpetua-se um estereótipo que ignora a realidade. Os crimes de colarinho branco representam um ínfimo percentual no universo carcerário. E são os que atingem diretamente a vida das pessoas, afinal, desvio de recursos públicos para bolsos privados significa menos saúde, menos educação, menos segurança, menos justiça social.

Já Fui Floresta por José Medeiros – Kuntanawa

Na outra ponta, os povos indígenas e o meio ambiente sofrem com a pauta econômica que precisa avançar e estar em consonância com o dito “progresso”. Na imprensa, o que se vê são notícias sobre um suposto confronto entre indígenas e ruralistas. “A grande mídia ainda produz um efeito grande e apaga a presença indígena. Pega um assunto que não é o principal, a nossa pauta é demarcação territorial, direitos indígenas que estão sendo retirados, não cobre o genocídio do povo Guarani Kaiowá. Desde 2009, o governo matou mais de 30 índios na nossa região e não dá mídia. Negros, pobres, pardos, sendo presos por tráficos. Nenhum índio é preso por fazer a luta, não vai dar destaque a quem luta, porque quem luta traz outra reflexão. Não existe confronto. O número de índios mortos é expressivo. 2017 foi um dos anos que mais teve morte no campo, inclusive indígena e isso não é noticiado”, denunciou Casé.

Já Fui Floresta por José Medeiros – Povo Rikbaktsa

Estas mudanças estruturais na sociedade brasileira passam obrigatoriamente pela educação. “Educar as pessoas para perceberem o direito à diferença, educar para ter uma visão mais ampla do mundo, filosófica, isso está sendo ferido pela reforma do ensino médio. Sem a reforma já estava difícil e a lei 11.645, que obriga o ensino da história afro e indígena nas escolas, fica ferida. Costumo dizer que a gente morria no 2º capítulo. No 1º capítulo descobrem o Brasil, os portugueses chegaram e nos mataram, é assim que ensinam. Existem pessoas que mesmo com essa dificuldade, essa falta de preocupação em discutir a presença indígena e negra, militam por isso. Na história do Brasil falamos que sempre existiu genocídio e etnocídio dos povos indígenas, tenta-se apagar, é a tentativa de se apagar essa presença. A discussão no Dia do Índio, 19 de abril, é sobre o cocar, a pintura, mas não discute o índio como sendo parte da formação da sociedade brasileira e estando na sociedade brasileira é difícil de entender nossos problemas atuais. Paulo Freire dizia, a educação não muda o mundo, a educação muda pessoas que mudam o mundo. A educação faz parte de uma estrutura, mas não se quer que as pessoas estudem e pensem criticamente para fazer a transformação do mundo e da sociedade como um todo. Sempre bato na tecla, a questão indígena faz parte da sociedade mais geral e enquanto existir sistema capitalista, seremos vitimados por esse sistema. O índio não bate com o sistema capitalista de exploração do trabalho e da natureza, e aí quando se fala para que índio quer tanta terra, mas se não tem índio, não tem terra, natureza, não tem vida e caminhamos para o caos”.

“Já Fui Floresta” por José Medeiros – Terra Indígena do Xingu – Povo Waura – Aldeia Biyulewene – Feliz Natal MT

Casé propõe uma reflexão ao final de nossa entrevista: “Pensar nisso, que os povos indígenas não eram os donos da terra. Nós somos a terra, é outra referência de pensar, não necessariamente reforma agrária, mas demarcação territorial, porque é ancestral, é congênito. É um direito ancestral. Alguns não índios veem a mata, o mato, cobra, bicho, e pensam vamos desmatar para fazer casa, condomínio, fazenda, pasto, trigo e nós vemos a natureza sagrada. O pé de planta fala com a gente, a cobra é um animal sagrado, o rio é sagrado. É a nossa cosmologia. Nosso paraíso não está no céu, está aqui na terra, é relacional, é um sentimento de pertencimento que carrega em si, essa possibilidade de ver um novo mundo possível. Somos portadores de um novo mundo possível, carregamos no nosso corpo, na nossa alma. Aqueles que não querem esse novo mundo possível nos colocam como inimigos do desenvolvimento, da economia. Mas não pensa que se mudarmos, perdemos o que é de mais sagrado, a natureza sagrada. Não é uma luta só para os povos indígenas, mas para todas as pessoas que querem outra sociedade, melhor, que possa conviver em harmonia com a natureza”.

Depois da chuva… Terra Indigena do Xingu-Aldeia Moygu-Povo Ikpeng – Fotos gentilmente cedidas para esta reportagem pelo fotógrafo José Medeiros – Projeto Já Fui Floresta

Mesmo diante de um cenário desolador, é necessário resistir, mesmo que seja com o corpo, mesmo que seja com a própria vida. “Vou falar como libertário: eu não acredito no estado, mesmo os que estão a frente dele. Alguns direitos conquistamos e que se não forem estruturalmente determinados, serão fragilizados no governo posterior. Mas, mesmo assim, não sou fora do mundo. Eu vivo nesse mundo. A minha fantasia é sonhar com coisas reais. Tem a utopia do novo mundo possível do qual fazemos parte, essa utopia, não podemos parar de lutar. Tem uma frase que o Galeano fala, mas não é dele, é de um diretor de cinema argentino, não lembro o nome, perguntaram para que serve a utopia? E ele falou que a utopia é como um pássaro, nós caminhamos atrás dele e ele voa. Caminhamos e ele voa. E para que serve a utopia? Para caminhar”.

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