Em um de seus contos, Julio Cortázar fez seus personagens viverem histórias de amor, disputas e mistérios em um longo congestionamento, que ninguém sabia o que havia causado. Ficaram ali dias e noites até que, finalmente, e sem qualquer explicação aparente, o fluxo de veículos seguiu seu destino, nos deixando desolados por não saber o desfecho daqueles que viveram intensamente enquanto aguardavam que o tráfego se normalizasse.

Os carros vêm e vão. A capacidade literária de inventar histórias permanece. Assim é com a escritora Larissa Campos, que enxerga além do trivial, do rotineiro, e imagina mundos, passados e futuros para o que encontra em seu caminho. Carros parados e abandonados em uma rua instigam a sua mente a criar os personagens e as histórias que os fizeram estacionar ali e ficar. O que há por trás de um carro esquecido durante dias em uma rua pacata em seu bairro? Sem resposta, ela inventa as perguntas, e assim o seu enredo literário se desenvolve.

A escritora Larissa Campos

“Eu fiz uma oficina da escritora Mayara Blasi, de Maringá, e ela propôs uma atividade para que listássemos as coisas que podíamos escrever. E veio na minha cabeça a palavra infância, fui destrinchando essa infância, mas que questões e aspectos eu poderia escrever? Coloquei no papel o posto de gasolina. Dos meus cinco aos nove anos de idade, eu morei em um pátio de posto de combustível em uma rodovia, logo que a minha família veio morar em Mato Grosso, no início dos anos 90”, contou.

A partir daquele dia, a escritora começou a amadurecer a ideia, e a experiência vivida com a sua família, que havia resultado em muitas histórias, tornou-se o combustível para a ficção do seu livro de contos: A casa do posto. “Eu usei aquele local, aquele mundo do posto de combustível como pano de fundo para desenvolver essa coletânea de contos. Todas as histórias se passam nesse universo, com personagens que também foram criados”, explicou.

Embora parta de fatos – um pequeno fragmento da realidade -, os contos foram ficcionados por Larissa, que mergulhou novamente naquele período da sua vida, quando ainda criança acompanhava o devir das pessoas naquela que era a sua casa. “As casas sempre me interessaram, as casas da minha vida, onde morei, como entrei e como saí dessas casas. E sempre fui fascinada por caminhões e aqueles homens que viviam nos veículos, que eram a ferramenta de trabalho, mas também eram a casa deles, que iam e vinham”.

Essa transitoriedade permeia toda a narrativa, observou Larissa: “A ideia tem muito disso porque a casa do posto também era um lugar transitório para gente. Sabíamos que não íamos ficar ali a vida inteira, era uma transitoriedade, um lugar de passagem. Acabamos ficando quatro anos. Nós estávamos ali, não saíamos, mas muitas pessoas passavam por nós, com suas histórias, dores, características, jeitos peculiares de viver e de ser”, compartilhou.

Nascida em Manaus, Larissa chegou a Mato Grosso pela proposta de trabalho que seu pai recebeu para ser gerente do posto de combustíveis. Nessa época, a família vivia no Rio Grande do Sul. “O que me motiva a escrever é uma vontade que eu não sei explicar. É como se, de repente, eu enxergasse uma história que eu posso contar e aí nasce. É algo como uma angústia, que se mistura com uma ansiedade, vira uma euforia, e parece que eu só vou me tranquilizar na hora que sentar e escrever aquilo. É dessa forma que funciona. Vem uma ideia ou um sonho, eu anoto e é como se aquilo ficasse me visitando”, revelou.

O livro A casa do posto será lançado até o final deste ano e será mais uma importante passagem na sua história como escritora. Para seguir o fluxo da sua escrita, fica aqui um poema da autora sobre tudo aquilo que pulsa e a movimenta em direção à literatura:

300 páginas de ficção
embalam minha realidade
nada doce.
O passageiro ao lado quer saber
do gênero
da autora
um breve resumo, por favor.
Tenho preguiça,
mas explico.
Digo que estou
farta
da realidade
sufocante,
farta dos baseados
em fatos reais
a me iludir
nas horas de diversão.
Uso a ficção como apoio,
tábua de salvação
e deixo a correnteza
levar.
Acordo leve,
em águas mais calmas.
“Me procure, se precisar”,
diz o passageiro ao lado
e me entrega um cartão
de visita:
detetive
especialista em fantasmas
paranormalidade
obsessões
magia e mistérios.
Guardo o cartão
entre as páginas
do livro e tento
inutilmente
retomar as rédeas:
até aqui, realidade.
Daqui pra frente, ficção.

(Ficção – Larissa Campos)

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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