O CineCaos abriu as comportas e o rio de luz escoou pelo breu no Misc no último sábado à noite em uma prévia do festival que acontece em agosto. O cinema é por si só um poço de memória. Fixado em luz o momento se eterniza. Mas nem tanto. Ele também se dissolve, é devorado pelo tempo e pelo descaso. Conservar memórias é tarefa de Sísifo. Inconclusiva, impossível de se concluir. A conclusão é a morte de qualquer coisa.

Foi perfeito. Se tivesse feito um roteiro não teria sido tão bem executado. Depois de muita batalha consegui reunir três minutos de dezessete que era o tempo do primeiro filme que fiz na vida. Em 1988, título: PX 110 Mhz, vídeo arte, vídeo ficção, uma mulher sonha e esse sonho é narrado por um pirata do rádio, pirata Antonio Sodré, a mulher: Margot Maria Ribeiro. O cavaleiro André Balbino é a representação do sonho, à cavalo dando voltas em torno da cidade o príncipe encantado sem nunca chegar a lugar nenhum, Clovito, Irigarai, o artista solitário vê o filme pela tv, entra e sai, não entra, nem sai, fica ali, a desconstruir uma pintura belíssima que terminou e logo começa a borrar tudo, as formas, as cores, caras e bocas. Esquecimento. Esquecimento.

Depois de trinta e um anos Eliete Borges chama! Rádio Livre Chama! A cidade surge em 1988 como proto metrópole, a cidade pela primeira vez vista desse ponto de vista, luzes, urbe, carros, pessoas, viadutos, sol, calor, cuiabrasa…

Uma fita VHS (você conhece isso?) travada, transportada para outra caixa. A maior parte do filme sem imagem, perdidas imagens, apagadas pelo tempo e pelo descaso. Descaso do autor, do poder do autor, do poder público, da ausência de consciência ou e de vontade. Descaso. Os biógrafos que se fodam, eu pensava assim. Hoje não, sem nenhum arrependimento também, só busco, outros filmes de minha trajetória na Rinha, Rinha foi outro filme radical feito em Cuiabá. Rock, gibi, sexo, rock, quadrinhos, rock, roubo, assalto, poesia underground punk, para quê? Para quem? Para quê, eu vos pergunto? Qual o sentido disso? Preservar. Conservar.

Não, não sou conservador. Acredito no poder devastador do tempo e das ruínas. Acredito que tudo passa. Até os filmes, letras, palavras, imagens, gente, tudo passa e é tão breve. Quando pensamos nisso vem a tona a questão de que o que recortamos, filmamos, escrevemos, é apenas e tão somente um  UM ponto de vista, nem dois é, um um um. E o restante que não é escrito, que não é visto, que não é lembrado que não é filmado? Como disse Eliete: o processo de guardar memória é acompanhado indissociavelmente de um processo de apagamento. Apaga-se o que não é registrado? Apaga-se o que não filmado? E as coisas que não são apreendidas por algum tipo de registro seja em áudio em visual em pensamento? O que está fora do registro não existe? Claro que sim e é a maioria absoluta mais de 99% não são registrados, dos fatos do cotidiano da vida de cada um e seus milhões de eventos micro eventos coisas aparentemente sem importância.

O filme do Sylvio Lanna é comovente, em busca do Roteiro do gravador, um personagem subjetivo caminha em busca do passado contido em milhares de rolos de filmes, filmes conservados, filmes meio conservados, filmes estragados, filmes queimados. Craquelados, se desfazendo em ruínas, guardados em latas que enferrujam no abandono, podres, se desfazendo ao toque dos dedos inquietos que buscam, escrafuncham, pesquisam, como conservar? Como preservar sem as condições adequadas? Como? Como?

Não creio que a razão possa tudo. Não creio que nenhum estado de pureza vingue na esfera do possível. a impossibilidade é condição sine qua non. A impureza do ser. A impossibilidade da pureza do ser. Nada pode ser absoluto.

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