Percebo a fuligem no chão do meu apartamento no centro de São Paulo. A fuligem no chão do banheiro e do quarto, o ar mais seco do que nos últimos dias. Abro o Twitter e descubro o incêndio devastador no último pedaço de cerrado que ainda resistia no Estado mais rico do Brasil. O Parque Juquery ardendo pelo fogo, causado provavelmente por um balão. Três dias depois, 80% da área preservada foi consumida pelas chamas da irresponsabilidade humana.

Mais notícias sobre o Brasil que queima e arde, mais incêndios em São Paulo, em Minas Gerais, no meu estado, Mato Grosso. O Pantanal queimando, de novo, em um ritmo ainda maior do que o registrado no ano passado, quando fotos de animais carbonizados saltaram em nossas telas anestesiadas. A média histórica já foi superada em poucos dias de incêndios que se alastram em uma velocidade assustadora. O fogo volta a consumir nossa esperança de um futuro, qualquer futuro habitável para nós e para as espécies que condenamos à extinção.

O fogo consome o Pantanal – Foto de 2020 por José Medeiros

Penso que preciso escrever sobre o Brasil que queima e seca. A superfície de água do Pantanal que se reduziu em 74% desde 1985. As águas do Brasil que somem ano a ano e lá se foram 15% de todos os rios, lagos, lagoas, corixos. De toda a água, supostamente abundante, que lava os corpos, garante alimento, sobrevivência, para nós e todas as outras espécies. Os humanos, que queimam a natureza e secam a água, buscam água em Marte. Mas temos água aqui… por enquanto.

Vejo as notícias e sinto que queimo por dentro, pouco a pouco, perco a capacidade de acreditar que não seremos queimados vivos, que o fim não se aproxima, que este é o capítulo derradeiro da história humana. Não há como sobreviver sem água, penso. Não temos como existir nesse mundo sem buscar o equilíbrio entre todos os delicados ecossistemas. Avançamos com fúria e ganância, derrubamos florestas, queimamos árvores, o fogo que se alastra e atravessa rios, dança e arde, assassinando os animais, que não conseguem fugir. A fauna e a flora depredada pela nossa ação humana. O agronegócio predatório.

Onça-pintada é resgatada com as patas queimadas – Foto de 2020 por José Medeiros

Os rios voadores da Amazônia, que regulam o ciclo das chuvas em todo o continente, secando também, tudo seca, tudo queima, e nós assistimos à TV como se nada houvesse mudado, como se tudo permanecesse igual. Crise hídrica. Reservatórios do Sudeste com capacidade em 30%. Até novembro a previsão é que estejam em 10%. Nem energia teremos para assistir ao fim dos tempos televisionado. Inertes ficamos diante da avalanche de notícias.

A preservação ambiental é o único caminho para superar a crise, a emergência climática. Não sei mais como escrever e dizer de forma que as pessoas entendam a gravidade do que estamos vivendo. Os povos indígenas ocupam Brasília. As manifestações contra o Marco Temporal, um absurdo jurídico criado por ruralistas para defender que os povos indígenas só têm direito às suas terras originárias e ancestrais se as ocupassem no momento da promulgação da Constituição, em 1988.

Um instrumento criado para manipular aqueles que não entendem os movimentos históricos de expulsão que os povos indígenas sofrem desde que os brancos chegaram há mais de 500 anos. Processo que nunca terminou e se perpetua pela grilagem, pela apropriação de suas terras, pelo extermínio e genocídio desses povos. Processo que se acentua durante a ditadura militar quando mais de 8.000 indígenas morreram pela ação do Estado. Como estariam lá em suas terras originárias se tiveram que fugir para evitar o assassinato em massa?

Enquanto os povos indígenas marcham em direção aos Três Poderes, anunciando a urgência daquilo que protestam, a grande imprensa se cala. As manchetes dos principais jornais impressos não noticiam a vigília, a luta que existe desde que as matas brasileiras começaram a ser derrubadas, desde sempre, desde antes de nós existirmos eles já estavam aqui, resistindo.

Foto Eduardo Figueiredo – Mídia NINJA

Os lugares de maior preservação no Brasil são justamente as Terras Indígenas. A cosmologia indígena não se aparta da natureza. A terra é o que eles são. Os animais são o que eles são. As águas são o que eles são. Corpo e terra são um só. A terra que guarda o corpo dos ancestrais, a memória, o sangue. Essa visão não cabe para essa sociedade que se vê distante da natureza, como se não fizesse parte do mundo,  acompanhando o fluxo incessante das redes sociais, as telas que nunca descansam, nunca desligam, compartilham, compartilham, compartilham, sem nunca entender, sem nunca ver as correlações de tudo que existe e vive e respira aqui, agora.

O Brasil que queima e arde. Eu não sei como escrever sobre esse Brasil.

O Brasil é Terra Indígena.

O vazio me assombra, o fogo queima a minha pele ainda que não chegue a me queimar viva, meus olhos ardem, minha garganta arranha, meu nariz sangra. Não haverá amanhã. Não haverá horizonte para nós. A natureza, um dia, se recuperará. A água voltará a correr, os animais que ainda sobreviverem, se perpetuarão, as árvores e o verde florescerão.

Nós, queimaremos.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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