Quando me deparo com a expressão “lugar de escuta”, o que me vem à cabeça é a aplicação do conceito na psicologia, em que o profissional está a postos para ouvir o que se tem a dizer. Pelo sexto ano consecutivo, a cidade de Curitiba recebeu o Litercultura – Festival Literário, no período de 6 a 10 de agosto na Capela Santa Maria. Entre os convidados Veronica Stigger, Ana Maria Gonçalves, Noemi Jaffe, João Silvério Trevisan e Cristovão Tezza.

A abertura se deu com Veronica, autora do premiado “Opisanie swiata”, 2013 (Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional). Atuando de maneira performática, trouxe um pouco de seu olhar sobre a escuta, brincando com os andaimes de algumas de suas criações estéticas. Fez uso da palavra divertindo-se, enquanto a assistência flertava com seu humor e perspicácia que afloravam com alegria.

Saí com meu exemplar de “Sul” autografado e com inúmeras ideias para as frases que ouço diariamente como fractais. Na segunda noite a escuta foi com Tezza, que abandonou a docência para viver plenamente o universo da literatura. Considerado um dos grandes nomes da atual cena, recentemente lançou pela Dublinense o volume “Literatura à margem”, em que reúne sete conferências celebradas entre 2009 e 2017. No texto que dá nome ao livro, experimentamos o olhar experiente de quem advoga em favor da liberdade de escolha:

Ninguém tem a obrigação de nos ler. Quem escreve, escolhe a solidão do risco. Assim, retomando a meada, o escritor também, queira ou não, goste ou não, é uma figura suspensa à margem, no instante em que se decidiu por sua primeira palavra. A literatura nunca é segura, nem inocente (TEZZA, 2018, p. 11).

Cristovão disse que entende a literatura como representação das vozes no mundo e como tal, a escuta seria o primeiro momento de sua aparição. Quer seja em uma perspectiva conspiratória, quer encantatória, o escritor trata da escrita como ocultação, uma descoberta daquilo que já existe – um deixar revelar-se. O escritor é um “mensageiro descartável”, um não álibi permanente diante da existência.

Ana Maria Gonçalves trouxe um feixe de luz ao rol contemporâneo de artistas da palavra. A autora de “um defeito de cor” apresentou sua defesa do imaginário. Trazendo elementos da filosofia nagô, via Muniz Sodré, pensa em outras vozes, realidades nas quais se reconhece o humano como causador dos problemas históricos. Demarca bem seu local de fala com a assertiva de que língua é território e linguagem é espaço de poder.

João Silvério Trevisan fala que é preciso botar para fora todos os medos, sem medo, para se produzir literatura; que a experiência diante do papel é um mergulho intenso em busca de um “eu” e que o diálogo primeiro é consigo mesmo, literatura como canal para se conhecer e depois se chegar ao outro. Para ele, a autoria é o diálogo com o mundo interior, encarando suas sombras e demônios, sem os quais não há o referido mergulho.

João Silvério Trevisan

Para Trevisan, que tem como autores diletos os poetas, o processo de criação é um “coito” poético no qual o seu lugar de fala (olhar), traduz a experiência com o cotidiano, perscrutado pelo lugar da escuta (outras leituras). A musa pode se apresentar sob a forma da intuição, mas é matéria-prima e para virar construto há um longo caminho a ser percorrido.

Avesso ao mainstrean deixa-nos a mensagem de que o instante em que o lugar de fala se perfila ao de escuta é quando se atinge o perdão. E encerra lendo o poema que fez para a memória de seu pai, objeto de seu último livro “Pai, pai”.

Encerrando o evento, a palavra franqueada a Noemi Jaffe se fez imponente por essa menina/moça/mulher que desde cedo aprendeu a conviver com idiomas. Que se encantou com Monteiro Lobato, com as séries de televisão que também me fizeram como leitor.

O rigor na leitura tem reflexo na escrita. Isso corporifica a linguagem literária. O tempo todo me vinha à mente a imagem de Fernando Pessoa, e mais ainda a de um seu amigo e contemporâneo. “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro”.

Noemi Jaffe

Noemi complementa com historias e curiosidades da língua que envolvem o seu processo criativo, como se observa no fragmento abaixo:

“entrevista

quase consegui entrevistar a sophie calle, mas não deu certo. passeando por uma outra exposição, os monitores me seguiam obsessivamente com os olhos. finalmente um deles tomou coragem, se aproximou de mim e me abordou:

desculpe, mas você é a sophie calle? mais si, je suis sophie calle. mais excuse mois, je ne parle pas portugais. sô um pouc, com sotac. ah! e você está gostando do brasil? muit. ê muit interessante. tiraram fotos comigo e ficaram felizes. também fiquei. não só a entrevistei como a conheci por dentro e fui um trabalho dela que nem mesmo ela chegou a saber.”

Perguntada sobre o que um escritor iniciante e leitor pouco frequente na casa dos trinta anos deveria ler a partir de agora, foi enfática: “Leia tudo!”. Destacou a importância dos clássicos brasileiros de todo o século XX, a obra completa de Machado de Assis e José de Alencar, a importância de se conhecer os contemporâneos. E depois partir para os clássicos universais. Dostoievski, Proust, Joyce, Thomas Mann, além de ficar atenta aos lançamentos traduzidos para nosso idioma.

Como crítica da Folha de São Paulo, o contato com a produção da atualidade é tarefa de casa. Destaca o último romance de Joca Terron “Noite dentro da noite” como um bom livro, mas afirma de maneira categórica que o que há de mais intrigante na literatura brasileira neste momento é a produção poética, sobretudo escrita por mulheres.

Djamila Ribeiro

Para todo e qualquer lugar de escuta, há o contraponto necessário para se compreender o momento. O lugar de fala está em voga, o que faz de Djamila Ribeiro um best seller à contrapelo do mainstrean que, a seu ver, insiste na separação por gênero da escrita de literatura. Desde Aristóteles que os gêneros literários buscam encaixotar os escritos daqueles que aventuram pelo universo da escrita. Os gêneros, sempre os gêneros, ora, pois pois…

 

Referências:

Mário de Sá Carneiro – Indícios de Oiro.

Noemi Jaffe. quando nada está acontecendo. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 23.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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