Contemplada pela Lei Aldir Blanc, obra reúne escritores indígenas de Mato Grosso de diversas etnias para registrarem suas histórias e reflexões sobre o tempo

A tão aguardada coletânea mato-grossense “Tempos” será lançada oficialmente na próxima segunda-feira, 30/08, às 19h em transmissão ao vivo no facebook da Editora Sustentável. Quatro autores indígenas assinam o livro junto de Naine Terena, apresentando um pouco da experiência escrita reunida nos últimos anos por cada um deles. São reflexões que partem da diversidade dos povos originários vivendo hoje no estado, ao alcance de todos. Constituindo assim mais um instrumento de apoio educacional para professores, pesquisadores e rica fonte de conhecimento para alunos de todas as idades.

Cada capítulo da obra é assinado por um autor convidado a apresentar a própria concepção do que seria a literatura indígena e o tempo de sua produção, faísca que gerou o título do livro. A provocação recai também ao público, para que elabore também suas percepções sobre o tempo através das reflexões apresentadas nos textos.

Helena Corezomaé é uma jovem indígena do povo Umutina-Balatiponé, jornalista e mestre em Antropologia. Eliane Xunakalo, da etnia Kurâ Bakairi, é graduada em Direito e uma ativa figura no movimento indígena de Mato Grosso, atuando junto à Federação dos Povos Indígenas do estado. Márcio Corezomaé é professor graduado pela Universidade do Estado de Mato Grosso e leciona em sua aldeia do povo Umutina-Balatiponé. Marcelo Mahuari é um articulador cultural e também professor, que mobiliza há anos a juventude indígena Munduruku em torno da cultura de seu povo.

Ao deparar-se com a literatura indígena é possível ler muitas histórias relacionadas aos próprios povos, a organizadora da obra Naine Terena reconhece a importância dessa representação, mas também lembra que não é somente este o eixo temático da escrita dos autores indígenas. “Este é um elemento importante para a existência dessa produção e a formação dos leitores que reconhecem a existência dos indivíduos indígenas em nosso país. Isso porque na história do Brasil há muitas lacunas com relação aos povos indígenas. Sabemos muito pouco sobre suas histórias, as línguas faladas pelos diferentes povos aqui existentes e o seu modo de vida. Assim, vemos que estamos diante de aspectos que aumentam a desinformação, o desinteresse e até mesmo geram pré-conceitos, que nós educadores podemos trabalhar para que deixem de ser presentes em nossa vida em sociedade”, pontua na apresentação da obra. 

“As obras indígenas que estão neste livro trazem um universo de informações que desconhecemos. Cada autor apresenta um mundo. Isso significa que ainda falta muito para entender o tamanho da diversidade do nosso país e do nosso estado, que conta com mais de 40 povos indígenas”, afirma Naine.

A coletânea “Tempos” foi produzida a partir do projeto apresentado por Téo Miranda, da Editora Sustentável, especializada na temática indígena e ambiental, ao edital MT Nascentes da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (SECEL-MT), viabilizado com recursos da Lei Aldir Blanc. As unidades impressas foram distribuídas entre os autores, a editora e entregues gratuitamente a bibliotecas públicas de Mato Grosso. Conforme a proposta do projeto, os autores poderão fazer doação de seus exemplares ou comercializá-los para os interessados. Para quem quiser adquirir, deve entrar em contato diretamente com algum dos autores.

Pontos de vista singulares

Marcelo Mahuare Munduruku relatou na obra o mito de origem dos seres no povo Munduruku a partir da narrativa de sua bisavó Joana bõrõ e do cacique Joaquim Crixi. Para Marcelo, esta é uma forma de representar um dos conhecimentos de seu povo, passados por gerações apesar do contato secular com a cultura não-indígena.  “Agora, com o uso das novas tecnologias da memórias, queremos deixar este registro para as futuras gerações, como forma de fortalecer nossos conhecimentos ancestrais. Assim, eles poderão se lembrar de suas origens e conhecer elementos que fazem parte de nosso mundo até os dias atuais. O registro dessas histórias também contribui de forma significativa para toda a humanidade, porque esses saberes serão perpetuados ainda hoje em nosso convívio”, escreve.

Já Helena Indiara Ferreira Corezomaé relatou a história e vida de Carminda Monzilar: artesã Umutina-Balatiponé que criou oito filhos com sua arte. Através da narração das memórias dos 70 anos de vida da anciã, Helena traça uma história de sua aldeia, além de evidenciar a importância do acesso à educação e do trabalho com artesanato das mulheres para o seu povo.

Marcio Monzilar Corezomaé utilizou os versos para expressar seus sentimentos e perspectivas sobre o Ser e Estar no mundo, título do capítulo que escreve na obra. Os versos livres dão ritmo à revelação de suas angústias e reflexões sobre um tempo passado e futuro, mas também contam uma relação singular do humano com a natureza, como é possível ler no trecho a seguir do poema Desejo:

“Quisera escrever um poema

Que falasse apenas de coisas simples e raras!

Na sua linguagem apareceriam verbos como:

Lagartear, borboletear e passarinhar

Demonstrando a verdadeira junção e conjugação

Entre homem-e-natureza.

No seu plano de fundo estaria o azul do céu do meio-dia

Riscado pelo voo da garça branca

Tal qual uma pintura abstrata que faz imaginar mil formas.”

Eliane Xunakalo encerra a obra com textos narrando a conexão perdida entre os humanos e outros seres, o mistério e o brilho que envolve o tempo. Há uma descrição singular e subjetiva do encantamento pela onça pintada, seres sagrados e também sobre a beleza, a dor, o silêncio, a maternidade e a pandemia. Um ponto de vista único sobre temas que circundam a mente humana há séculos.

Uma contribuição histórica

O enorme valor que a publicação desta obra representa para a literatura em Mato Grosso, consiste em ser um marco na recente história da literatura indígena no Brasil. Ao se fazer uma breve retrospectiva, podemos apontar que a literatura indígena no Brasil, até onde se sabe, tem início por volta de 1979, com a escritora Eliane Potiguara (do povo Potiguara), que publicava “poemas-pôster” e cartilhas mimeografadas com suas criações artísticas. Em 1980, temos a notícia do primeiro livro oficialmente publicado por autores indígenas: a obra “Antes o mundo não existia” (Livraria Cultura Editora), de Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, membros do povo Desana. Em 1996, houve a publicação de “Histórias de Índio” (Companhia das Letrinhas), de Daniel Munduruku, que inicia um movimento mais articulado dessa literatura indígena.

Já no estado, a FLIMT – Feira do Livro Indígena de Mato Grosso teve três edições a partir de 2009 e foi a primeira do Brasil dedicada exclusivamente à literatura dos povos originários. Essa Feira surgiu no seio da Secretaria de Estado de Cultura de MT, em parceria com o Instituto Usina e o Núcleo de Escritores Indígenas do Brasil, e reuniu no estado um pouco do que é produzido pelos autores indígenas. Dentre as produções que reconhecemos neste local, estão as vinculadas ao 3º Grau Indígena da UNEMAT e que atualmente tem uma parte do acervo disponível na internet. Também tivemos a presença de alguns autores como Severiá Idiorie Karajá, Marcelo Mahuari Munduruku e Luciano Ariabô Kezo, que despontaram no cenário nacional através de seus escritos.

Serviço:

Live de lançamento do livro “Tempos”

Quando: 30/08 às 19h

Onde: facebook.com/editorasustentavel

Ficha Técnica:

Título: Tempos

Autores: Eliane Xunakalo, Marcelo Munduruku, Helena Corezomaé, Marcio Corezomaé e Naine Terena (org.)

Editora: Editora Sustentável

ISBN: 978-65-87418-14-8

Páginas: 64 páginas

Sobre a editora:

Desde que foi fundada no ano de 2012 em Mato-Grosso, a Editora Sustentável vem trabalhando com publicações em parcerias com instituições públicas e organizações da sociedade civil, tais como ONGs, instituições de ensino e cultura, associações e cooperativas. Através dessas parcerias, a Sustentável especializou-se em publicações dentro das temáticas socioambientais, consolidando-se através de publicações acadêmicas com atuação expressiva no campo das ciências humanas e sociais, assim como educação. No campo da arte e literatura, vêm fomentando a produção artística e literária indígena. A publicação mais recente dentro da temática é o e-book “Da Máquina De Roubar Almas, À Máquina De Registrar Memórias”, em homenagem à mestra da Cultura Mato-grossense Naine Terena de Jesus, reconhecida através da Lei Aldir Blanc, disponível para download gratuito no site editorasustentavel.com.br.

Sobre os autores:

Eliane Xunakalo, da etnia Kurâ Bakairi, é bacharel em Direito e pósgraduada em Direito Administrativo e Administração Pública. Atua no movimento indígena auxiliando organizações no planejamento e na execução de projetos sócio sustentáveis. Também é assessora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso, vice-presidente do Conselho da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira e membro do Instituto Yukamaniro de apoio às Mulheres Kurâ Bakairi. 

Indígena do povo Umutina-Balatiponé, de Barra do Bugres, Mato Grosso, Helena Indiara Ferreira Corezomaé é graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em Antropologia Social pela mesma instituição. Militante indígena, atua há dez anos como comunicadora fazendo coberturas que mostram os anseios das populações indígenas do Brasil e há três anos é de um site de notícias mato-grossense. 

Líder indígena na aldeia Nova Munduruku, Marcelo Manhuari Munduruku é professor e representa sua etnia no Conselho Estadual de Educação. É formado em Línguas, Artes e Literatura pela Universidade do Estado de Mato Grosso e está fazendo Mestrado na Faculdade Intercultural Indígena. Como escritor e músico, dedica-se ao fortalecimento do movimento cultural Munduruku em Mato Grosso, além de ser idealizador do Instituto Munduruku, ONG de sua aldeia, na Terra Indígena ApiakáKayabi em Juara-MT.

Com o nome indígena Marê, Marcio Monzilar Corezomaé nasceu na aldeia Umutina, localizada no município de Barra do Bugres-MT, porém seus avós maternos são da etnia Nambikwara e os avós paternos são da etnia Pareci. É licenciado em Línguas, Artes e Literatura, especialista em Educação Escolar Indígena e mestre em Estudos Literários pela Universidade do estado de Mato Grosso.. Atualmente, trabalha na Escola Estadual de Educação Indígena Julá Paré, na mesma aldeia em que nasceu, atendendo desde a Educação Infantil até o Ensino Médio.

Naine Terena de Jesus (org.) é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em Artes pela UnB e doutora em Educação pela PUC-SP. Também realizou estágio pós-doutoral desenvolvendo pesquisa no Lêtece – UFMT, cujo foco foi a utilização das Tic por indígenas de MT. Esteve vinculada através da bolsa PNPD Capes ao Ateliê de Imagem e Educação de Cáceres, onde desenvolveu a pesquisa “A arte do vídeo”, realizada a partir da problematização das narrativas realizadas por educadores da rede pública de ensino de Cáceres-MT. Atuante na Oráculo comunicação, educação e cultura, realiza pesquisas, docência em cursos livres, comunicação e execução de projetos.

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