Fabrício Carpinejar publicou neste ano de 2020 uma obra distinta de suas demais; trata-se de “Colo, por favor!”. São quarenta crônicas que discorrem sobre aspectos inerentes ao isolamento social praticado em função da COVID 19. Uma crônica para cada numeral que compõe a referida quarentena. Destaco uma frase de cada uma delas para compor este ensaio.

“O colo é o antídoto da saudade”. (p. 11). A carga semântica que recai sobre o colo vai além da representação corporal e busca alcançar todo tipo de acolhimento. Carpinejar apresenta em linguagem simplificada certo frescor da alma. Diante da página em branco se percebe que “A esperança é um sim diante do não, um talvez diante do nada”. (p. 15).

divulgação, Colo, por favor!

O poeta nos põe em contato com nosso interior e aponta para o fundo do poço como aquele local de onde não se pode descer mais. “Quem está no raso, só pode subir”. (p. 20). Essas considerações me fazem pensar que esse livro é uma espécie de autoajuda literária. E não pensem que estou reduzindo seu texto a um adorno para os desesperançados, mas um alento para qualquer cidadão. “Não estamos isolados, mas protegidos”. (p. 23).

Recuperar o conforto da casa, a companhia dos entes queridos, distantes do cotidiano que nos engole, talvez essa seja a tônica dos textos. Não há o que temer para além das perdas. “O medo apaga a sua identidade”. (p. 27). A vida existe para ser intensa, não apenas infensa ao trabalho e afazeres domésticos.  Muitos trabalham para que a gente volte ao normal, mesmo que seja um outro normal. “Uma vacina é feita de quantas mortes de médicos e enfermeiros?” (p. 31).

Uma das músicas que mais ouvi nesta quarentena foi a “Oração do tempo”, de Caetano Veloso. E não podia deixar de citá-la aqui, uma vez que “Sempre alguém em casa é a vela. A chama da fé. O fogo da crença”. (p. 35). E essa chama, essa vela, com o passar do tempo nos acalma, nos engrandece, até porque “Educação permanente é integridade”. (p. 39). Precisamos estar íntegros e para isso, “Fazer o certo traz paz de espírito”. (p. 44).

Colo, por favor!, divulgação.

Amar é verbo para se praticar sempre; o tempo todo. “O desamor é passividade agressiva” (p. 48). O contrário do amor não é o ódio, como se pensa, mas o desamor. “A pior solidão é estar mal acompanhado”. (p. 52). Errar é humano e todos sabemos. “As pessoas encontram as razões mais malucas para justificar os seus erros”. (p. 53).

Na relação a dois, como lembra o poeta, “Há um longo histórico de despejos e de reintegrações de posse”. (p. 60). A volatilidade dos relacionamentos é uma das resultantes do excessivo individualismo da sociedade de consumo. Há inúmeras modalidades de relacionamentos tóxicos. E o tempo acusa a todas, quando se para pensar e analisar o entorno. “Os ponteiros caminham ao contrário em nosso amor”. (p. 63).

Divulgação, editora Planeta

Não há vacina, nem antídoto cem por cento eficaz contra a incompreensão e falta de empatia. “Tudo o que você sofreu o prepara para sofrer menos”. (p. 67). As sociedades primitivas nos ensinam muitas coisas. “As formigas podem ser invencíveis”. (p. 71). É impressionante a sua capacidade de organização para o trabalho. Mas nem só de trabalho vive o humano. Precisamos de lazer, de entretenimento, de arte e cultura. “A velhice é um banco de horas de ternura”. (p. 75). Preparemo-nos para esse momento. “Só quem altera o seu temperamento amadurece”. (p. 79).

Separações, rompimentos, brigas em família, aumento de suicídios, esses são alguns dos tópicos encetados pela epidemia. “O adolescente tem mais risco de morrer do que o velho. É uma estatística, não uma opinião”. (p. 84). Devemos buscar nos relacionamentos uma equiparação emocional. “Viver para os filhos já é preocupante. Viver pelos filhos, é completamente assustador”. (p. 90). Há que se ter cuidado com tudo, sobretudo com o outro, seja ele quem for. “Nem inimigo mortal, nem amigo demais”. (p. 94).

Há espaço para novas descobertas. Para se valorizar o campo sensorial e as percepções ao redor do umbigo. “A memória é capaz de emergir a partir de uma canção, de um perfume, de um gosto”. (p. 97). Aquilo que é importante saltará aos olhos em algum momento. “O ponto de partida será impraticável quando só enxergamos o ponto de chegada”. (p. 102). É preciso valorizar o aqui e agora de qualquer relação. “Jamais encontramos um interruptor para apagar as nossas vozes”. (p. 107).

Fabrício Carpinejar. Foto de divulgação

Sábias palavras de Carpinejar me alfinetaram durante a leitura. Sobretudo as mais necessárias. “Somos todos complicados”. (p. 111). Pensar antes de projetar no ar algumas elucubrações. “Quando todos estão em igual situação, não adianta reclamar”. (p. 115). Precisamos lembrar de que “Ter um pouco de medo é saúde”. (p. 119). E que “Trauma é uma dor que não trabalha”. (p. 123).

O isolamento nos propiciou uma viagem para dentro. “O recolhimento resgatou a discrição e o charme dos tímidos e introvertidos”. (p. 127). A vida a dois teve que se reinventar. “Um colchão afundado é amor edificado”. (p. 133). E se isso tudo foi capaz de me fazer refletir, talvez seja pelo fato de que “Agora é tarde, não existe como suportar”. (p. 138).

O que quero dizer com tudo isso? Apenas brincar com as palavras do poeta e oferecer a você, leitor, leitora que me acompanha nesses minutinhos de descuido que “O coveiro está sozinho tanto quanto o morto”. (p. 142). E que “A morte tem inveja da vida”. (p. 145). Mesmo sabendo que faz parte da mesma. Ao chegarmos à velhice talvez possamos pensar como a avó de Fabrício, que vivia com pouco, algumas peças de roupa, para quem “uma gaveta preenchia a história de seu corpo”. (p. 149).

Paro para pensar no que foi (está sendo) esse período de luto social, se não que “O confinamento é estar com a família a toda hora”. (p. 155). Talvez até mesmo os ateus e incrédulos em geral tenham se perguntado até que ponto esse momento “Num período de jugo consumista, não deixa de ser uma ironia a imersão espiritual”. (p. 160). O tempo é agora. “Não existe ternura retroativa”. (p. 161). Encerro com três máximas que encerram o livro. São extraídas das derradeiras crônicas.

38) “A onipotência mata duas vezes, a si e aos demais”. (p. 168);

39) “Eu me enganei, o orgulho sempre nos engana”. (p. 171);

40) “Que a saudade de tudo me torne melhor do que antes”. (p. 176).

 

REFERÊNCIA

CARPINEJAR, Fabrício. Colo, por favor. Reflexões em tempos de isolamento. 2° ed. São Paulo: Planeta, 2020.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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