Por fauno guazina

Agrupamentos, vivemos em coletivos para superar nossas poucas habilidades enquanto animais. Sem garras, sem pelos ou couraça, visão, olfato e audição bem pouco apurados, a não ser para nossos gostos e preferências. Detalhes que fazem da humanidade uma espécie bem complexa por natureza, esse ser coletivo imposto.

Primeiro agrupamento, a família, esse monstro que faz tudo por nós e cobra em chantagem emocional, julga como um imperador e perdoa, as vezes, mesmo os piores crimes e faltas. A família, esses outros nem tão outro, é tantas vezes como eu, um grupo onde eu sou outro que se parece eu também.

Depois inventamos a sociedade, fuga do império familiar, onde nunca somos só eus, sempre nós, sempre existe o outro. Nela tem muitos outros, ela é feita de outros, nos descobrimos pelos outros, os outros nos afetam, os outros nos revelam, o outro é a máxima fonte dos afetos.

Nessa dimensão de outros tudo é sentir e reagir. Muito mais complexa, nela é preciso que seja ainda mais reação do que sensação. Nossa reação deve ser medida e ponderada, seguida de padrões morais que nada tem a ver com a ética ou bem-estar. Mas como se convive com esse outro, ou melhor, como se deixa de ser eu e o outro e nos tornamos nós? quantas e quais versões de nós?

Nessa sociedade, não de nós, mas dos outros, descompromissada com os eus, nela devemos nos manter em estado de bem-estar permanentemente, sublimar mesmo que seja horrível o presente, e assim tentar nadar e se “fizer por merecer”, atravessar o mar de eflúvios afetivos que se possa estar passando.

“A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes” — Deleuze

Não, não é nem um pouco humano, mas neste mar de outros, talvez seja melhor amortecer e fingir. Sobreviver, tática é escolher como passar pelos eventos. Parece pretensioso, parece racional, mas é afetivo, é resistência, é também evitar efeitos colaterais desnecessários.

Partindo do pressuposto de que tudo é inventado mesmo, as relações, o dia, o hábito, as práticas, como nos colocamos pra fazer tudo que se faz? De onde se levanta e continua indo? Como se cumprimenta o outro e finge que nada está acontecendo?

Parece que nessa sociedade, baseada num outro nós, a vida de certa forma é isso, um corpo político criado como uma armadura que limita nossas ações e movimentos, que nos “protege” o corpo, do real corpo, o eu, pra evitar efeitos colaterais. Uma farda, apertada demais, padronizada, bem menor que o tamanho do corpo, desconfortável, mas que ganhamos de “presente” e ainda devemos sorrir e agradecer por esta “dádiva”.

Neste mundo outro, que se perpetra real e consolidado, como um tanque de guerra a nossa frente, nesse mundo o corpo não vale nada, é somente ferramenta de produção. Todos os afetos devem ser despidos, tudo é colateral, onda de desafeto, só o que importa é ser como os outros.

Padronizado dentro deste uniforme o eu fatalmente constata:

— desejam somente minha produção não meu corpo!

Nabucodonosor, William Blake, 1795/c. 1805
fauno guazina é produtor cultural, designer e professor universitário.

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