Paulo de Tarso

Eu, Paulo Cesar Pinheiro, nasci no dia 28 de abril de 1949. Passei minha infância na beira do mar de enseada, na Japuíba, pedaço de Angra dos Reis, vivia no casebre de meu avô, pescador. Lembro que do lado esquerdo, havia o riachinho que descia da nascente no alto da montanha, e do direito, o manguezal, coalhado de siri, fonte eterna de minhas lembranças e trabalhos.

Comecei a compor musica e escrever versos com 13 anos, claro que no inicio as coisas eram bem fraquinhas. Foi um tempo, porém, de exercício cotidiano e aprendizado veloz. Ano seguinte já fazia coisas sérias que passaram a ser observadas por talentos da MPB.

Com 14 anos levava minha vida de subúrbio, jogando bola, rodando pião, e coisas próprias de uma criança, mas a musica já tinha me enredado em seu misterioso e encantado mundo.

Foi nessa época que eu e João Aquino, meu primeiro parceiro, gravamos em uma fitinha, o que seria nossa primeira musica.

Com  melodia ainda meio mal acabada, letra e musica foram se encontrando e nascia assim a nossa primeira  obra musical: Viagem. Primeira gravação com Baden Powell, depois Márcia em 1968, com ela entramos definitivamente no circuito.

Viagem

Minha jornada continuou, quando conheci Baden Powell, que para mim era a referência musical mais forte, voltara a pouco de Paris, depois de dois anos por lá. Seu parceiro musical dispensa comentários, Vinicius de Moraes, que ganhara o mundo. Acreditem! Eu com 14 anos, junto com Baden Powell e Vinicius de Moraes!

Mostramos algumas musicas, Baden abriu um sorriso e se encantou. Estávamos no centro da musica popular brasileira, e minha primeira noite de boemia.

Baden Powel e Paulo César Pinheiro

Um dia depois do encontro Baden bateu em casa e falou: Está na hora de fazermos alguma coisa juntos.Falou que tinha um samba que homenageava  um personagem capoeirista  folclórico que ele recolhera em suas andanças pela Bahia que se chamava Besouro.

Sumi uma semana e depois apareci com a letra pronta. Baden adorou. Eu, porém, não me dei por satisfeito e voltei para casa e fiz ajustes, aí sim, definitivos. Nasceu daí uma longa parceria com Baden e musicas como Samba do perdão, Cancioneiro, Carta de Poeta e tantos outros trabalhos, como Lapinha. A musica foi parar no Festival que se chamava “ Bienal do Samba, cantada por um furacão  chamada  Elis Regina.

Lapinha 

Já com vinte anos passei a ser procurado por todos os intérpretes. Bagagem eu  tinha, e muita,  pois gravava com os mais importantes do país. Minha parceria com Baden teve um momento de grande dor com a separação dele e sua mulher Tereza. Vários meses de silencio total em musicas e letras. Um samba definitivamente encerrou esse ciclo de dor. Com certeza o mais doido samba feito por nós, mas, sem modéstia, um dos mais lindos.

 Refém da solidão

Conheci Tom Jobim, apresentado por  Baden Powell, de quem eu havia me tornado parceiro. Encontrávamos-nos sempre em reuniões musicais, cotidianamente feitas em casa de amigos como Francis Hime, Marcos e Paulo Sérgio Vale e na própria casa de Tom. Certo dia, Tom me telefona e diz: Paulinho, estou com umas ideias e preciso conversar. Semanas depois com letra e musica pronta nascia “Matita–Perê“. Acredito ter alcançado a altura do maestro soberano.

Matita – Perê

A vida caminhava, e eu fazendo letras para amigos e novos parceiros. Foi quando Vera, irmã de Baden, me apresentou a Gisa Nogueira, irmã de João Nogueira. Eram ambas professoras primárias e grandes amigas. Era a hora de conhecer João Nogueira, que ainda engatinhava em sua carreira, então, em 1970 numa feijoada nos encontramos e “Mulato“ como era conhecido nas rodas de samba me apresentou seu trabalho.

A partir desse momento nos tornamos companheiros até o fim de sua vida, mais tarde me confidenciou que me via como o espírito de seu pai.

João Nogueira e Paulo César Pinheiro

Pois bem, um dia no inicio de 1972, passou em minha casa para mais uma noitada. Até então nunca se falou em parceria, era apenas amizade e vadiagem. Nesse dia mencionou um samba em homenagem a seu pai, melodia pronta, mas sem letra, pois não conseguia terminar. Queria saber se eu não topava dar um jeito. Falei pra ele que era preguiça e como bons irmãos traçamos linhas do que seria a canção “Espelho“. De João Nogueira tive a honra de ser  amigo, parceiro, produtor e eterno irmão.

 Espelho 

Elis Regina, que vez ou outra, me ligava e fazia encomendas, disse que gostava do meu jeito coloquial de escrever, achava que meus versos eram diretos , sem volteios , sem pedantismo, sem frescuras, de linguagem malandramente popular feito para todas as classes sem perder a poesia. Assim certo dia, toca o telefone, e Elis diz: Paulo César (a única que me chamava assim) faz um samba pra mim. Tema “Cai dentro”. Semana inteira trabalhando o tema, e assim ficou a encomenda da maior cantora desse país, junto com Baden Powell. Mais uma vez fizemos  um samba rasgado

 Cai dentro

Foi por causa de um samba de terreiro que acontecia no Portelão, em Madureira que conheci Clara Nunes, em um ano estava casado. Um dia Clara me fez uma encomenda, queria gravar um samba que falasse da Portela, sua escola do coração, argumentei que depois do samba do Paulinho da Viola “Foi um rio que passou em Minha Vida“, era difícil tentar se aventurar por este assunto.

Situação difícil de resolver.

Clara Nunes e Paulo César Pinheiro

Porém, certo dia fui tomar um ar. Perdido em devaneios e imerso em meus pensamentos me coloquei a observar o cantinho de Clara Nunes. Era uma mesa de fazenda, toalha de renda branca, grande oratório aberto em torno dele imagens de orixás espalhados e, dentro os santos católicos. Estava ali na minha cara, o que buscava tanto, era só misturar o sagrado e o profano como faz o povo intuitivamente em suas manifestações folclóricas. Em suma: Uma procissão do samba num canto de fé.

Portela na avenida 

A primeira vez que entrei em um estúdio de gravação, era tudo muito novo e prazeroso. De longe vi uma personalidade marcante na musica popular, Wilson das Neves, foi um verdadeiro encontro de almas. Por volta de 1975, me tornei produtor de discos, contratado pela EMI e sempre contei com sua mão firme para me ajudar em termos de percussão. Como sempre falei, “Das Neves“ era uma corrente telepática de balanço. Sempre, timidamente, o maestro me dizia: Quero mostrar uns sambas meus.

Um belo dia ele resolveu cantar umas melodias para meu cunhado e parceiro Rafael Rabello. Encantado, Rafael veio e falou do talento do mestre do ritmo, sambas enredos, samba canção, partido alto, sincopado, choro e tudo do que há de melhor em termos de melodia de MPB. Em menos de um ano já tínhamos mais de 40 composições (hoje quase todas gravadas). Mas, o destaque vai para a primeira que fizemos, onde pela admiração e carinho, quis homenageá-lo. Acredito que dei voz a seus pensamentos, louvando de tabela esse dom maravilhoso que guia e imortaliza aqueles que fazem samba.

O samba é meu dom

Certo dia, em um fim de tarde, diante de cervejinha gelada, Das Neves e eu, profetizávamos o terror que estava sendo formado pela violência em nossa cidade. Nossa conversa passava pelas favelas e por um possível levante de morros e favelas que estão a mercê da falta de cuidado do poder público.

Eu e Das neves, então, ficamos imaginando a possibilidade de o morro descer sem ser carnaval. Pra guerrilha urbana propriamente dita. Meu pensamento voou, a mente ferveu e comecei a comparar um desfile, com todos os rituais que o cercam, com a guerra civil declarada. Juntos fomos ao trabalho e saiu o samba que se segue. Um verdadeiro grito de alerta.

 O dia em que o morro descer e não for carnaval  

Na segunda metade da década de 70, houve um Projeto Pixinguinha em que participavam João Nogueira, Sergio Cabral e Mauricio Tapajós. Sucesso absoluto e viagens e distancia de casa, saudade imensa de mulher, filhos e amigos, e principalmente, do Leblon. Quando Mauricio encontrou comigo a primeira frase foi “Tô voltando“

Isso ficou na memória e como de hábito tomou forma de samba. Simone que estava escolhendo repertório para seu disco anual quando ouviu o samba gritou:

– Esse é meu  !!!

Foi pro estúdio e arrebentou. 1979, o samba ganhou o Brasil. Só dava ele nas rádios. Mas vejam vocês a arte tem seus mistérios. Pouco tempo depois, estava eu vendo o Jornal Nacional da TV Globo cujo o tema central era o dia do retorno dos exilados políticos ao nosso país, tendo sido conquistado com muita luta dos que ficaram encarando e regime militar, anistia ampla, geral e irrestrita, quando pra minha surpresa, no avião nossos companheiros entre entrevistas e choros ao vivo, cantavam em viva voz “Tô voltando“. Até hoje lembro da pancada em meu coração. Esse momento foi inesquecível para esse compositor. A musica tinha tomada outra conotação a partir dali. E é assim que é ouvida até hoje.

 Tô voltando

Casei-me com Clara Nunes em 1975, e ela morreu aos 40 anos, no auge de sua carreira e vitalidade, em 1983.  Numa simples cirurgia de varizes na perna houve um choque anafilático, com consequências irreversíveis de lesão cerebral. Foi mais de um mês de grande sofrimento para família e fãs. Mas, como toda a dor, o tempo passou. A vida voltou ao seu curso. O cotidiano se impôs para todos. Menos para mim. Tudo estava revirado. Tudo mudara. Eu também. Pra onde eu ia ninguém me deixava esquecer. Não tive mais sossego. Me enclausurei!

Certo dia, encontro João Nogueira que me diz : Porque não faz um samba para a Clara, um samba de adeus. Briguei com João e Mauro Bolacha que estava na conversa e recusei.

João com muita habilidade me disse: – Paulinho, só você tem autoridade pra fazer esse samba. Se você não fizer, vai pintar um monte de samba ruim sobre o assunto, e você vai ter que aturar para sempre, papo e melodia de baixa qualidade em seu ouvido. Vai em frente irmão, exorciza seus demônios e cala a voz dos oportunistas de plantão. Pensa nisso com calma. Ninguém vai se atrever fazer samba depois do seu.

João Nogueira tinha razão. A melodia foi feita e eu criei os versos mais definitivos que pude sobre o acontecimento. Ninguém ousou fazer outro, nunca mais. Porém, foi de dilacerar o coração, e eu jamais consegui cantar essa canção.

O nome é o título de uma crônica do meu querido amigo Arthur da Távola.

Um ser de Luz 

 

Paulo de Tarso, ama a bossa nova, Lenine, e o Palmeiras. Jornalista, radialista 
e pesquisador.

 

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