Ivy Menon

Não havia Ensino médio, na cidadezinha da minha adolescência. Para estudar fora, tivemos que preparar o ambiente, um ano antes, para o pai entender que não correríamos risco de ficar difamadas. Queríamos muito estudar e uma Kombi nos levaria, ao município vizinho que oferecia curso de técnico em economia, num colégio estadual. Os filhos do delegado e as meninas do cartorário estavam no segundo ano, lá, informamos ao pai. Ele teria orgulho. O Ensino Médio mudaria nossa sina. Desde muito pequenos, eu e meus irmãos, nos tornamos especialistas em preparo da terra. Aplicamos a estratégia, a nosso favor, para conseguirmos que o pai nos autorizasse.

Antes disso, precisei lutar muito para entrar no Ginasial. O pai era contra: “para mulher, até a quarta série está bom”, ele me disse. Eu peitei. Bati o pé e jurei que estudaria. Ele fez muxoxo e avisou: “não ajudo em nada”. Que eu comprasse meus próprios livros. Aceitei. Aos onze anos, virei doméstica, na casa da professora, por meio período. E ia para o Ginásio, à tarde. Pulei a admissão. Já havia pulado a segunda série.

O Segundo Grau era um sonho. O pai mais uma vez estrilou: “mulher que estuda fora, vira biscate”. Eu enlouqueci. Nasci com o privilégio de ser a primogênita. E sabia me aproveitar disso, para brigar pelos meus direitos. E pelos direitos dos meus irmãos. O pai dizia não. Eu confrontava. Ele cedia. E cobrava caro: trabalho semiescravo na lavoura. Eu aguentava o tranco e meus irmãos também.

A roça fazia parte do ajuste. De dia o sol, a chuva, a enxada e o milho arrebentando bolhas nas mãos, calos imensos e a terra vermelha, fértil e quente que, estancava o sangue que saía dos cortes em nossos pés. A menstruação que queimava e inundava os trapos colocados entre as pernas. A água com gosto de gasolina; a diária parca paga nos fins de semana; a comida fraca, tudo valia a pena, porque, à noite, a felicidade viria. Para nós, a felicidade estava na escola, nos livros abertos. No quadro-negro escrito com giz e nos lábios dos professores que se moviam. Hipnotizados, bebíamos felicidade.

Ainda que nossos cabelos cheirassem a sabão de soda; nossas mãos fossem grossas e as unhas sujas; ainda que o cansaço do dia nos exaurisse, nós tínhamos os livros. A alegria morava nos gráficos cartesianos, nos atlas de Geografia, nas histórias de Machado de Assis e no Sítio, do Monteiro Lobato, descobrimos. A felicidade era matemática, poesia e luta. “Não existe almoço de graça”, aprendemos, na prática, esse ditado. Para nós, os pobres, tudo era custoso.

De dia, a roça. De noite, a Kombi na estradinha de terra. A vida pode ser construída com argumentos, aprendemos nas aulas de história, com fundamentos de filosofia. Crescemos, sangrando com a terra vermelha, vertendo suor, vendendo a força dos nossos braços finos. A enxada nas costas, o embornal, com a marmita de feijão, arroz e abobrinha. Os excessos. Os abusos. As dores nos músculos. A angústia de termos que nos levantar, antes das cinco, quando a panela, na cozinha frigia, nas mãos da mãe a preparar a refeição que levaríamos.

Nos finais de semana, eu e minha irmã, adolescentes, depois de lavarmos a própria roupa, de limparmos a casa e colocarmos as tarefas escolares em dia, podíamos desencardir as mãos com leite de mamão, para que afinassem e disfarçassem os calos. Tirávamos a terra de debaixo das unhas e penteávamos os cabelos, lavados com sabão de soda, e íamos dançar. A vitrola na calçada. Rostos colados nos alimentavam de fantasia. Na volta, o sonho de uma cama exclusiva. Dormíamos em três.

Amarras imensas nos prendiam. Rés do chão. A liberdade custa suor e sangue. Alguém deve pagar por ela e não tínhamos quem nos redimisse. Trocamos nossa infância por uma possibilidade de futuro. Creio que se a nós tivesse sido dada uma chance que fosse, teríamos voado, e muita dor nos teria sido poupada. Meus irmãos, nas entressafras da boia-fria, não tombariam com o peso dos pacotes de jornais nas cabeças ou andarem tortos com os feixes de lenha, nas costas. Não precisariam carregar a caixa de engraxate nos ombros e a fome nos olhos. Nem teriam piolhos e insolação, nem barriga redonda de lombriga. Nem tanta humilhação de pedir comida.

A despeito da dor, crescemos. Apenas dois por cento dos nossos amigos de infância saíram de lá. Menos, ainda, chegaram à Universidade. A maioria morreu antes dos cinquenta anos.

Sou grata ao meu pai por ter-me dito não: me obrigou a lutar. E por não ter sido tão não assim: tive chance de vencer inúmeras lutas e de me levantar quando caí. Para nós, crescer custou preço de morte todos os dias. A despeito disso, eu e meu irmãos vencemos, cheios de cicatrizes, mas felizes e preparados para escrever a própria história.

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

 

5 Comentários

  1. Querida Ivy Menon, ainda emocionada com tudo que li, por ter conhecido um pouco mais a fundo sua história, nem tenho adjetivos a lhe atribuir, pela gigante que é. Eles soariam bobos e inúteis diante de sua magnitude.
    Seu exemplo deveria ser gravado num patamar bem alto para que todos aqueles que reclamam de “barrigas cheias” enxergassem o que é lutar para alcançar um sonho e realizá-lo. Eu, particulamente, sinto-me minúscula diante de você. Aplaudo sua força de vontade, sua garra, sua coragem e muito mais, por ter chegado onde chegou. Um abraço cheio de carinho! Grata pelo privilégio dessa leitura!

  2. De beleza brutal e denunciante teu texto, Ivy. O arranjo dramático e voluntário de um sistema q faz conviver fortes e fracos, em q estes, esgotados, sem igualdade d oportunidades, chegam a ñ desenvolver suas capacidades. Contudo, tragicamente, conformados c sua condição, podem se sobrepor aos dmais, ao encontrar seu espaço produtivo, e sua propensão de realizar tarefas pela mínima gratificação. Textos sempre emocionantes e reflexivos. Parabens!

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