Por Lucas Rodrigues*

Com a renda de contador e uma vida regrada, Carlos Assunção conseguiu uma boa aposentadoria após décadas de trabalho como profissional autônomo em Araçatuba. Somada a seus investimentos em ações, conseguia R$ 22 mil por mês, renda maior que a recebida por 90% da população brasileira.

Se mudou para a pacata São João da Boa vista, onde comprou um pequeno imóvel que atendia suas necessidades, longe da família que sempre o desprezou por não entender sua depressão e seu jeito antissocial.

Agora sim, sozinho. Seu psicólogo recomendava se abrir a amizades, a interações afetivas, mas a dificuldade era grande. Em um ambiente totalmente novo, talvez a missão fosse mais fácil. O tímido contador, no mesmo dia da mudança, aproveitou o domingo à tarde para dar uma volta na cidade e iniciar esse desafio. Deu azar. Foi assaltado por um noiado perto do Mercado do Pneu. Teve subtraído o celular e a carteira com todos os documentos e, pior, com seu cartão do banco dentro.

Registrou o Boletim de Ocorrência e voltou para casa. A barriga roncou. Lembrou que não tinha um tostão furado para comprar comida. Impossível sacar dinheiro na boca do caixa, pois era final de semana e o banco estava fechado. A salvação era o caixa eletrônico, uma vez que havia feito cadastro biométrico para sacar sem o cartão. Santa tecnologia! Chegou na máquina para sacar sem o cartão. Foi solicitada a agência e o número da conta. Eita, como ia saber se esses dados estavam no próprio cartão?

Voltou para casa. Revirou a papelada e achou o documento da abertura da conta, contendo as informações. Caixa eletrônico de novo. Inserida a agência e a conta, passou essa etapa, ufa. Agora vai! “Por segurança, informe o número do token do aplicativo do celular”. Como vou ver se o celular foi roubado, caralho? Maldita tecnologia!

Peraí, ainda tinha o cartão de crédito em casa. O limite era baixo, mas dava para segurar as pontas até resolver o imbróglio. Passou em casa e se apressou em ir ao mercado, aproveitando para comprar todos os alimentos básicos até o banco abrir na segunda-feira e assim, finalmente, poder sacar seu dinheiro. Digitou a senha na máquina. Transação não autorizada. Meu Deus, só pode ser brincadeira. Morto de vergonha, deixou as compras no caixa em meio aos olhares de “olha o caloteiro” de quem estava atrás na fila.

Chamou o gerente, mostrou o Boletim de Ocorrência e pediu para ligar na operadora de cartão de crédito para resolver a situação, já que nem celular tinha mais. Solidário e sem demonstrar desconfiança, o gerente de apelido Marcão, provavelmente pelo porte avantajado, emprestou o próprio celular a Assunção, que passou uma boa impressão ao representante do supermercado pelo vocabulário e traje refinado.

Este ramal não aceita ligações de telefones móveis, disse a secretária eletrônica do banco. Solicitou um telefone fixo. Não havia nenhum no mercado após a aquisição do Plano Combo Empresas. A gente parou de usar porque ninguém com menos de 90 anos usa telefone de casa, coisa de velho hehehe, brincou o gerente, tentando acalmar o visível stress do contador.

Ao lado do mercado havia um posto de gasolina. Foi até lá em busca do pré-histórico telefone fixo exigido para se comunicar com a central de cartões. Conseguiu. Para falar com um de nossos atendentes digite 9. Digitou 9. Banco Santandesco, Kellen, boa tarde, com quem falo? Marcos. Em que posso ajudar? Meu cartão de crédito não passou, queria saber o que aconteceu. Só um instante senhor, vou verificar.

Sinfonia n° 5 de Beethoven tocou por 45 segundos. Senhor, seu cartão foi bloqueado pela suspeita de estelionato. Verificamos que o senhor sempre fazia compras em Araçatuba e em razão da inusitada tentativa de compra em São João do Boa Vista, o sistema entendeu que alguém poderia estar se passando pelo senhor.

Tudo bem, mas como eu faço para desbloquear? Então senhor, eu não tenho como promover o desbloqueio porque isso só pode ser feito pessoalmente, por questões de segurança, pelo gerente da sua agência, até para que ele possa ter certeza de que foi o senhor quem tentou efetuar a transação. O senhor pode se dirigir a uma de nossas agências que o gerente da unidade irá auxilia-lo. Mas eu preciso disso para hoje, eu estou desesperado, estou sem meus dois cartões. Entendo senhor, mas esse é o protocolo do banco para proteger os seus dados e a sua conta. Posso ajudar em mais alguma coisa? Não, definitivamente não. O banco Santandesco agradece a sua ligação e tenha uma boa tarde.

Já era noitinha e não havia o que fazer. Os caixotes da mudança ainda estavam na nova casa e não havia uma bolacha velha para comer. Tomou um gole d’água e foi para cama, ansioso para que a segunda-feira viesse logo. “Dorme que a fome passa”, pensou Assunção, parafraseando a angústia externada pela atriz que interpretou Helena Camargo – mãe dos cantores Zezé Di Camargo & Luciano – no premiado filme Dois Filhos de Francisco.

10h55 da segunda-feira e Carlos Assunção estava na porta da agência do Santandesco, só não mais angustiado para a resolução do problema em razão se não ter nutrientes no corpo para isso. Foi o primeiro a ser atendido. Bom dia senhor. Bom dia, gostaria de fazer um saque em minha conta, é numero tal. Aliás, quanto tenho na conta agora? Ok, só um instante, aqui consta que o senhor tem R$ 33,7 mil. Quanto gostaria de sacar? R$ 3 mil por favor. Ok, me forneça um documento com foto por favor. Então, esse é o problema, eu fui roubado e levaram meu RG junto. Mas eu trouxe aqui o Boletim de Ocorrência e a certidão de nascimento. Compreendo, mas sem documento com foto a agência não permite o saque. Moça, eu acabei de dizer que fui roubado, como eu teria minha certidão de nascimento se eu não fosse eu? Então senhor, essa exigência é para a sua própria segurança. Imagine se o ladrão tivesse roubado a sua casa, levado a certidão de nascimento e ele mesmo registrasse o B.O. fingindo ser você, e depois viesse aqui no banco? Se nós permitíssemos que ele sacasse, tenho certeza que o senhor não ia gostar depois. E esse tipo de coisa acontece, não é que eu desconfie do senhor, é porque queremos protegê-lo de ser vítima de golpes, ainda mais que o senhor deseja fazer um saque de quantia considerável.

Você tá achando que eu é quem sou bandido? Como ousa insinuar isso?? Calma senhor, eu peço para que o senhor se acalme. Eu tô morrendo de fome desde ontem, esse banco está me humilhando, isso é um absurdo, eu vou processar vocês, eu… vou explodir tudo isso aqui!!, esbravejou o contador, perdendo o controle de uma vez por todas e fazendo gestos amplos e grosseiros com os braços. Socorro, segurança, tirem esse homem daqui! Não vou sair daqui não, me larguem, esperneou Assunção, que foi enxotado para fora da agência sob ameaça de acionamento policial caso lá permanecesse.

Já quase sem forças para andar e com a pressão baixa, o contador não aguentou o sol quente do meio-dia e desmaiou em uma calçada nas ruas de um bairro periférico próximo ao local. Se arrastou em busca de uma sombra perto de um casebre abandonado. Sem forças para falar com eloquência, se arrastava pela calçada e pedia ajuda de forma confusa e desconexa. Ao ver aquela cena mórbida, os transeuntes atravessavam a rua, com medo do que consideravam mais um noiado dominado pelo efeito devastador do crack. Até o noiado que o assaltou passou na região e viu a situação de sua vítima, mas preferiu ignorar o apelo com medo de ser incriminado. Desidratado, incomunicável, desnutrido e em condições insalubres, Assunção pereceu menos de 12 horas depois, tornando-se o primeiro caso conhecido de brasileiro que morreu de fome mesmo tendo o salário de um ministro do STF na conta.

*Lucas Rodrigues é jornalista, ator enferrujado, ama espetacularizar o cotidiano

Comentário

  1. É, amigo, estamos nos tornando escravos dessa inevitável tecnologia. Abordagem chocante e inteligente dessa realidade tecnológica, do impacto desse novo ordenamento social em nossas vidas.
    Belo texto.

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