A leitura de Lua em Libra, de Silvana Schultze, acena para um livro de contos, desde o texto da orelha esquerda, a ficha catalográfica, até o último texto em que a autora afirma que “… esses foram os contos que resistiram, à espera de leitores. Escritos em quatro, cinco, seis computadores diferentes, aos pedaços, em diferentes versões, aos supetões”. Imersão, Luísa, Charlie, Family card, Experiência, Giovana, Martim, Orlando, Rômulo e Paradoxo são os títulos.

Orlando e Giovana me parecem personagens de Charlie, ator que propõe uma reflexão para sua plateia; mas Orlando e Felipe são também a mesma pessoa. E a confusão vai se tornando espessa, mesmo que a linguagem não se contradiga tanto. Nessa imersão há mergulhos diversos “E assim começava mais um dia, em que eu seria obrigado a me movimentar quando tudo o que eu desejava na vida era ficar imerso” (Schultze, 2018, p. 07).

Giovana é quem afirma a dupla identidade Orlando/Felipe ao leitor; mas ela e Luísa, não seriam também a mesma pessoa? “Esse era o objetivo de Luísa: ficar ao lado da pessoa amada. Não imaginava grandes desdobramentos para essa figura de linguagem, abstrata e subjetiva, (…) ´ ficar ao lado´ ” (idem, p. 18). E os duplos parecem ganhar fôlego na escrita de Silvana.

Ao me olhar no espelho, não me reconheço como ele ou ela, mesmo que esteja sem roupas. São as roupas que determinam o gênero que assumirei a cada dia, e o que me motiva a escolher o tipo de roupa que vou vestir pela manhã para mim é um mistério (idem, p. 38).

A experiência do texto na experiência da escrita: enunciadores e enunciados se entrecruzando. “Quem seria capaz de garantir que nenhuma daquelas oito mulheres sentadas pacientemente naquela sala um dia já não fizera parte do sistema?” (idem, p. 53). Oito mulheres? Luísa, Giovana, Mirela, Vampira, Leca, Violeta, Marta, totalizam sete, nomeadas. Quem seria a oitava? A própria Silvana? Ou a francesa do restaurante, de quem não sabemos o nome; ou ainda Eveline, a pós doutora em Saúde Pública referendada em nota de rodapé acerca de ubiquidade. Há quem pense que seja Virgínia Woolf (cheque!).

Como é estar em muitos lugares ao mesmo tempo? Reflexão que reporta ao trabalho de Eveline. Marta dizia não sobrar mulher heterossexual no mundo, em um futuro. E Violeta, como se posiciona nessa polifonia arranjada por Silvana Schultze?

Silvana Schultze

Deixou de ser Dona Violeta e virou Senhorinha, a quem meu pai nunca mais dirigiu a palavra diretamente. Foi o jeito dela se vingar da rejeição, de ser traída sem ser, da vergonha de toda a cidade saber que meu pai tinha trocado a mulher por outro homem, um homem que também era responsável pela desgraça do meu pai, porque enquanto meu pai e outros meninos apanhavam, dormiam no chão e todo o resto, esse homem estava na casa grande, sentando à mesa para tomar sopa quente, dormindo em cama quente, descansando para na manhã seguinte arrumar um pretexto para sair de casa, ir olhar os meninos todos (p. 105-6).

Silvana nos traz essas questões em forma de simulacro e depois abandona o leitor, saindo à francesa, como a moça do restaurante, não mais vista depois do assédio constante aos olhos do marido, que não parecia se incomodar. Talvez daí a formação de diálogos entre aspas, sem a dureza e incisiva atuação dos travessões. Não cabe aqui qualquer pretensão de associar texto e contexto; verdade e memória; história de vida e literatura no que o texto de Silvana diz e a possíveis referenciais embutidos em seu histórico de vida. Concluo com uma citação curiosa acerca do universo mítico e (talvez) lendário construído em torno da figura de Woolf, senão vejamos:

… se olharmos para o texto de Virgínia sob a ótica da escrita feminina e da desmemória, veremos que ele se constitui um raro exemplo dessa modalidade de escrita e que, por isso, se aproxima muitíssimo do que a autora constrói em sua obra ficcional: ali importam menos os fatos (verdadeiros ou não) que a maneira de articulá-los, de entremear as “grandes causas” (se é que se pode localizar “grandes causas” no texto de Virgínia) às mais triviais banalidades, às mais corriqueiras observações… (BRANCO, 1991, p. 42).

Olhando de volta para o texto de Silvana Schultze me pego a pensar no que há de paradoxo em toda essa imersão. O fazer literário possibilita o mergulho profundo no mar da sensibilidade, no mundo cósmico da linguagem. Que o medo de se expor passe longe dos que aventuram pelo universo da palavra, a propósito, faz tempo que mexi com essas coisas, não tenho certeza, mas parece que o meu ascendente é Áries.

 

REFERÊNCIAS

BRANCO, Lúcia Castelo. Escrita Feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.

SCHULTZE, Silvana. Lua em Libra. São Paulo: Patuá, 2018.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Uma riqueza de detalhes, entre personagens e linguagem, na obra “Lua em Libra” de Silvana Schultze. O extraordinário é a percepção do Doutor em Literatura Luiz Renato, principalmente, nos detalhes relacionados com a circunspeção que se enuncia a obra literária. Sua análise crítica e literária contribui e versa valorativamente com a ideia do autor do original, destacando aspectos positivos, evidenciando situações enigmáticas e trazendo características peculiares à tona, como por exemplo perceber aspectos de um outro autor nos traços de uma escritora e, possivelmente, leitora de Virgínia Woolf, “Há quem pense que seja Virgínia Woolf (cheque!)”.

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