Por Túlio Paniago*

Um único gole queima a língua, amarga a saliva e embrulha o estômago. Mas todos tomam, sem maiores problemas, daquele mesmo grão moído imerso na mesma água fervente e servido no mesmo bule enferrujado. Sem piscar os olhos, sem lamber os lábios, sem absorver o cheiro, sem queimar as línguas, sem sentir o amargo… Simplesmente ingerem.

E embora esteja absolutamente amargo, ninguém faz sequer uma careta, tampouco expressões de agrado, engolem com a mesma indiferença com a qual respiram, sem se dar conta do ato. E não se trata do sabor, pois provavelmente fariam o mesmo caso a bebida estivesse absurdamente doce. Suponho, inclusive, que se houvesse um quilo de açúcar para cada litro de café, beberiam da mesma forma, sem levantar quaisquer suspeitas em relação ao paladar. Afinal, ainda que se mude o sabor, se consome o hábito. E isso basta.

De todo modo, a saliva se mantém na boca. É muito amarga para engolir. O mais viável seria cuspir discretamente. Porém, no bule, se revela a seguinte imagem desbotada: Jesus servindo café aos apóstolos na santa ceia e a frase “Café não costuma faiá”. Uma abrupta risada se precipita, e na tentativa de contê-la, a saliva é engolida por engano. De imediato, boca e órgãos internos são consumidos por aquela incomum amargura kafékiana.

Por sinal, sonhara recentemente com um café que jorrava de tetas bovinas direto para sua boca. Uma vitrola tocava ‘Vaca Profana’ na versão da Gal e o bezerro preterido, observando a cena, berrava “mamãe!” enquanto caminhava num corredor de frigorífico. Apesar de sonhos intranquilos, despertara naquela manhã com o hálito tão puro que poderia adoçar cafés com o sopro. Bem diferente de agora, após este repulsivo gole, quando tudo se desvela amargo.

Enquanto relembra o sonho, todos terminam seus cafés e assim permanecem; com as mesmas caras de paisagem, com as mesmas posturas de cadeira. Nada fazem, nem mesmo sinalizam que se retirarão dali. Não há troca de olhares em momento algum, mas subitamente todos os olhos se voltam para a única xícara não vazia: a sua.

Ao despertar do devaneio, constata a atenção de todos centrada no objeto em sua mão. Tem a sensação de que não chegará a tempo, mas não sabe onde. Estranha a luz parca daquele horário, mas não há horas. O relógio na parede não tem ponteiros. Cogita derrubar a xícara ou jogar fora o café, mas teme uma possível reação intempestiva dos olhares que subliminarmente já infligem violência. Talvez deva se submeter à inevitável amargura da ingestão, mas isso também seria um ato violento contra si.

Então pede açúcar. Ninguém se move e a ausência de som se estabelece. Até que o assobio estridente de uma chaleira irrompe o fino hímen do silêncio e um úmido cheiro de café fresco inunda suas narinas. O odor é sufocante, uma vez que transmite a mesma amargura do gole que lhe invadiu há pouco. Falta ar nesse espaço ausente de tempo. Sente que a opressão dos olhares molesta o espírito enquanto a amargura do café violenta o corpo.

De repente, um novo bule transborda sobre a mesa. O fumegar constante atiça a todos. Estão ansiosos, porém mantêm os olhos, bestialmente hostis, fixos sobre a única xícara cujo líquido ainda não foi consumido. Essa obsessão coletiva, por algum motivo obscuro, os impede de dar continuidade ao ritual.

Alguém começa a socar a mesa de maneira insistente e agressiva. Alguns segundos e todos repetem o movimento como que involuntariamente. O som dos punhos sobre a madeira é intercalado com o das xícaras, que dão pequenos pulos a cada pancada, com exceção daquela com café. Esta se abriga sob as trêmulas mãos que nada socam.

O fumegante bule novo segue, inexplicavelmente, a transbordar sem que seu conteúdo diminua. E mesmo após escorrer pela mesa e pelo piso, a temperatura também se conserva inalterada, de modo que o chão está tomado de café em ebulição e o local ganha uma insuportável atmosfera de sauna.

Só então se dá conta que não há janelas ou portas e toda iluminação provem de algumas telhas acrílicas. Não sabe onde está, não conhece nenhum dos presentes, nem sequer se lembra de ter pedido ou aceitado café. E embora suas vísceras estejam se contorcendo violentamente desde o intragável primeiro e único gole, parece inevitável o que está por vir.

O vapor se espalha, ocupa e abafa todo o ambiente. Os poros se dilatam, e agora sua pele também comunga desta amargura gasosa, líquida e cada vez mais sólida que lhe comprime gradativamente. Aos poucos, seu suor, antes frio, começa a se aquecer. O desconforto no estômago parece se abrandar. O gosto na boca, também. Uma gota de suor emerge da testa e queima sua pele ao escorrer. Ao limpá-la, percebe que transpira café. Porém, apesar de suor, não é salgado. E apesar de café, não amarga. Sente inflamar o corpo como numa possessão. Então, num impulso incontrolável, bebe todo o conteúdo da xícara de uma vez. Não sente amargura alguma, nem sequer sente sabor.

 

*Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros, e vive em 
Cuiabá desde 2010.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here