A teia que tece as intrincadas linhas da vida e nos conecta a todos em uma consciência que se expande como os fios que interligam a memória – pessoal, subjetiva, coletiva. Os mesmos fios que nos arrematam para um significado maior, oculto, em que resvalamos cotidianamente, mas que fugidio não nos pertence. É como desenrolar um novelo de lã infinito. Ao puxar um fio, outro surge, e assim por diante, incontáveis vezes em direção a eternidade. A vida como um pulsar, um organismo único e indivisível, um equilíbrio perfeito de laces e enlaces, uma cadeia em constante transformação, mutação. Basta olhar para a natureza e para a humanidade, perfeitamente imperfeitas, em que cada existência está correlacionada a outra, criando um ambiente de harmonia onde todo despertar serve a um propósito. Pode parecer utopia pensar a vida como ela é, diante das inúmeras intervenções humanas, modificando paisagens, atirando espécies à extinção e retirando do planeta, todas as condições favoráveis para a nossa permanência. Mesmo que os olhos ceguem para esse sentido intrínseco, esta condição é inerente ao nosso ser e estar no mundo. Essa teia que tece os significados é o fio condutor da narrativa criada pela artista japonesa, Chiharu Shiota, na exposição Linhas da vida, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo.

O começo é o corpo, como material de criação e potência, tal qual o barro de onde nasce a mitologia das mitologias, parindo assim um porquê para o surgimento da vida. É ali onde o relato autobiográfico ganha corpo. Chiharu se fotografa e se filma, em uma catarse, com a predominância do vermelho simbolizando o sangue da morte e do nascimento. A artista com seu corpo é arte. O seu corpo, o veículo para a narrativa, concretizando a sua efêmera existência em processo de construção e desconstrução. Corpo, identidade, memória.

O salto do corpo é em direção a transformar-se pintura. A artista novamente é o instrumento, suas mãos se abrem no papel branco e manchadas com a tinta vermelha criam a impressão de ascender em direção ao que é sagrado, profanando a santidade do imaginário mundano. Suas mãos, cálice para a cor, um banho de imagem e sangue. As fotos do momento de pintar o quadro preenchem a parede oposta. Chiharu como uma entidade vermelha, de braços abertos, fechados, com o corpo manchado, pulverizado de tinta, transformando-se em pintura.

Exposição Linhas da Vida de Chiharu Shiota – Foto Marianna Marimon
Exposição Linhas da Vida de Chiharu Shiota – Foto Marianna Marimon

O fio do novelo perpassa telas, pinturas, esculturas, fotografias e encontra olhares, percepções, desejos, experiências. “A exposição itinerante apresenta várias características da vida humana, como a nossa existência, a morte e os relacionamentos. Assim que o espectador entrar no espaço criado, quero que ele reflita sobre sua vida, seu propósito, suas conexões e sua memória. Com minhas instalações, quero unir as pessoas no Brasil, não importando sua origem, sua posição social, formação educacional, nacionalidade ou qualquer outro fator divisor. Como humanos, devemos nos unir e questionar o nosso propósito na vida e o porquê de estarmos aqui”, escreve a autora.

Exposição Linhas da Vida de Chiharu Shiota – Foto Marianna Marimon

Chiharu Shiota conta a sua história através da arte. Vive intensamente o sentido que passa em suas obras. Pintou o próprio corpo em uma performance e a tinta tóxica queimou a sua pele, só saindo do seu corpo depois de meses. Ela teve que cortar o cabelo. A arte em sua radicalidade.

A memória presente. O piano do vizinho queimado na rua depois de um incêndio. Os objetos que nos pertencem e se despedem pelo caminho. Chaves, roupas, cartas. O percurso de cada peça. Narrativas como fios do novelo se entrelaçam. É a imersão na poética que se confunde com os nossos próprios nós e lembranças de lã.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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