Ao iniciarmos o estudo da linguagem de qualquer autor, devemos ter em mente sua importância em determinado tempo e espaço, o que se pode determinar pela linguagem utilizada. Em Antonio Sodré, o hibridismo conceitual mescla elementos herdados da tradição ocidental, como também do Oriente. Aficcionado pelas formas clássicas, sua obra traz forte influência da cultura japonesa, com destaque para a poesia de Matsuó Bashô, que atravessou a pé o seu país no século XV.

É pertinente ressaltar que elementos da oralidade estão marcados historicamente na poesia de Antonio Sodré e a materialidade de tais signos se percebe pelo linguajar simplificado, o que não implica necessariamente em uma fanopeia limitada, empobrecedora; ao contrário, pois da utilização de vocabulário simples edifica-se um conjunto arquitetônico de poemas que extrapola tal limitação.

A lentidão dos sentidos…

Tartaruga no meu jeito de ser…

Ó! Como viver correndo,

Se a eternidade é estática?!!!

Observamos que o poema reflete a correria da vida moderna, o quão banalizado está nosso cotidiano em uma caminhada frenética, vazia de significados. Percebemos um eu-lírico extasiado diante da velocidade, do ritmo alucinado da vida contemporânea, cujo vocativo no terceiro verso aponta para tal expectação. Há, para o eu-lírico a plena sensação de que é preciso desacelerar. A transformação do substantivo tartaruga no verbo tartarugar mostra o grau de mimese sugerido dentro da circularidade típica da linguagem poética.

Do primeiro para o segundo verso os sentidos vão escorregando, deslizam vagarosamente. Três dos quatro versos apresentam sete sílabas poéticas, sendo o terceiro um decassílabo. O espreguiçar-se começa no primeiro verso com a palavra lentidão, prolonga-se com o uso das reticências… Impõe-se com o verbo e estica-se todo em dez sílabas para a expectação total com o uso do vocativo “Ó!”. As exclamações, ao final, após a interrogação, parecem sugerir algumas certezas implícitas ao discurso do poeta que viceja por detrás do eu-lírico. Nesse aspecto é que se insere uma insurgência com a tradição que encontrará em Baudelaire seu grande intérprete, aos olhos da crítica canônica.

Minha caneta é uma

Pequena espada…

 

um golpe a cada

palavra

 

Que traço no poema

Recortando sonhos…

Neste poema, os dois primeiros versos trazem o total de dez sílabas fônicas, sete nos dois seguintes e doze, nos dois últimos. Há neste poema um equilíbrio entre o uso do “enjambement”, típico da poesia francesa do final do século XIX e a divisão silábica utilizada. O corte da métrica simula o golpe do samurai esculpido na palavra escrita. O uso das reticências nas estrofes inicial e final aponta para o encurralamento da palavra entre a caneta (o pensamento ainda não materializado) e o traço (no papel), destino do significante para desvendar os significados. A comparação da caneta com a espada traz para o centro das discussões a disposição do eu-lírico em demonstrar a força que a arte tem para exercer algum tipo de transformação.

O poeta Antônio Sodré, o Sodrezinho em setembro de 2010

Ao fazermos a escansão dos versos encontramos medidas novas e velhas disfarçadas por uma estrofação aparentemente nova, embora estejam embutidas no poema curiosidades métricas que o colocam em destaque no conjunto da obra do artista. Se fizermos a contagem das sílabas fônicas por verso, obteremos os seguintes registros: seis sílabas no primeiro verso, quatro no segundo, quatro no terceiro, duas no quarto, seis (ou cinco) no quinto, pela possibilidade de haver uma tensão métrica na dicção da palavra poema[1], e cinco no último. Ao invés de lermos verso a verso, respeitando o elemento visual, podemos estabelecer outra leitura, como se o poema tivesse apenas três versos, e, quem sabe, apenas uma estância, o que forçaria a uma leitura silábica da seguinte forma:

Minha caneta é uma pequena espada…

Um golpe a cada palavra

Que traço no poema recortando sonhos…

Um terceiro poema breve, mas nem por isso menos impactante nos traz uma imagem idílica sobre a qual se escondem alguns significados. A religiosidade é algo que sempre ocupou espaços na cabeça do poeta. O eu-lírico traz à tona essa questão, de maneira crítica nos três pequenos versos:

Sábado à noite!

Os sinos da catedral

Aceitam o silêncio

É sabido por todos que o verbo é que demonstra qualquer ação em uma construção frásica. Aqui temos uma frase “Sábado à noite!” e uma oração “Os sinos da catedral aceitam o silêncio”; o verbo encontra-se no último verso e é propositivo no sentido que significa um estar de braços abertos para a representação do silêncio. Aceitar o silêncio constitui-se, portanto, em um estranhamento para com os sinos, objetos barulhentos que têm por função anunciar a hora das missas, como também o falecimento de alguma pessoa importante nas cidades cristãs.

Do poema-piada de Oswald de Andrade aos hay-kays japoneses, o grau de leitura e conhecimento do poeta acerca da produção poética do planeta era algo extremado. É ainda no rastro dos hay-kais que Sodré navega, trazendo ao encontro de Baudelaire, que anuncia a modernidade poética:

Uma pétala

Que cai

Do

Flamboyant

Virando

Tapet

Pro

passant

Aqui, o ritmo é forjado pela economia absurda de sílabas poéticas que imitam o movimento da pétala que cai da árvore, lentamente. A referência a Baudelaire é clara com a imagem do “passant”, que reforça a influência francesa. Flamboyant, tapet e passant dão certa sonoridade rítmica ao poema que aproxima o leitor da língua francesa, bem como de Baudelaire, pavimentando uma leitura intertextual, como preconizam os jakobisonianos, ou dialógica, como prefeririam os bakhtinianos. E são esses sons que contribuem para a materialização dos signos poéticos.

A construção de uma leitura que os ligue tem como resultante um último poema selecionado que demonstra como o autor se relacionava com o mundo, com a vida, com os objetos ao seu redor. O que fazer diante dessa avalanche de progresso?

Depois que puseram asfalto

na minha rua

nunca mais imprimi os meus

passos no chão…

Morador do Pedregal, bairro incrustado na região central de Cuiabá, berço de movimentos populares, sem a benção dos mais fortes, essa região da cidade, hoje tão diferente, foi capaz de despertar no então jovem e talentoso artista grau tão elevado de análise, a partir da porta de sua casa. Se o asfalto simboliza o progresso, por um lado, por outro o impede de deixar suas marcas no chão. O asfalto não permite rastros, destrói vestígios da passagem de tantos pés. O segundo verbo demonstra claramente a impossibilidade do eu-lírico em registrar seu cotidiano, em deixar marcas visíveis de sua passagem por ali, por aqui, qualquer canto ou lugar. Vida que segue…

[1] A tensão métrica se caracteriza pela possibilidade de mais de uma leitura. A palavra poema é composta por três sílabas gráficas, mas pode ser lida com duas, apenas: po/e/ma; poe/ma. A escolha entre um hiato ou ditongo vai depender do ritmo que o autor/leitor gostariam de dar ao verso.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Cara !! demais..nem li a matéria inteira…parece que eu estava vendo vcs. dois em mais uma espetacular produção do caximir, batendo boca o tempo todo..rixas poéticas..vc. provocando ele era hilário..ele ficava grilado mas depois absorvia..gostava muito de vc e do Dudu. Grande cara.

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