Por Demétrio Panarotto*

Caminha pelo centro da cidade. Corredor polonês. Videogame. Fliperama. A rua é estreita. Cidade antiga com cara de moderna que envelheceu. Caminha espremido e emparelhado por prédios sem marquises. Repito: prédios sem marquises. E os ares-condicionados caem. Um a um. E se estatelam no chão, próximo, próximo, próximo, muito perto próximo dele. Ele segue sem desviar ou procurar abrigo. Aliás, abrigo não há, precisa contar com a sorte. Olhar fixo. Na frente. Não há como voltar. Apenas segue. Precisa chegar. Sabe que não pode ficar parado. A única coisa que ele sabe: não ficar parado. Talvez a próxima fase do jogo, depois que vencer a dos ares-condicionados que caem dos prédios, seja mais branda. Não importa, não pode confiar nisso, precisa se locomover. Lembrou que tem apenas uma vida. Sempre teve apenas uma. A mesma. Talvez nas outras mesmas vidas tenha se deparado com a mesma fase e tenha desistido, será? Apenas suposição. No final, todas elas são vidas jogadas. E a derrota talvez não esteja no fato em si, mas na repetição do mesmo. Será que de novo cairá na mesma fase? Aquela mesma fase de sempre. Que parece anunciada desde o começo? Assim, segue sem ter certeza de nada, somente improviso. Quando um ar-condicionado, o de seu lado direito, o penúltimo da série, desprendeu-se das hastes de metal, chegou a pensar ter escutado um barulho e um assovio. O barulho, sim. O assovio, não. Impossível. O vento circula muito acima dos prédios. Além disso, assovios são coisas de sua cabeça. Desde criança tem a impressão de ouvi-los sem saber de onde vêm. E segue. É o que lhe resta. Restos. Sobras da vida. Ali, onde ele se encontra, mormaço. Nem sol há. Fogo brando. Imaginou, sem considerar, uma solução prática para aquele corredor: as máquinas dos ares-condicionados poderiam estar para o lado de dentro dos prédios, os aparelhos fazendo o ar circular do lado de fora, e os controles remotos nessas horas ficariam na mão de quem? do diabo, só pode… o quê? Não entende nada de ares-condicionados, de edifícios, de arquitetura, de engenharia, de carpintaria. O mundo edificado não lhe pertence. Ficou nervoso. Não tem o costume de ficar nervoso. Aí ficou nervoso pela segunda terceira quarta vez, perdeu as contas. Desconsiderou. Ou tentou. A cidade, no ponto em que se encontra, é um inferno, mas chega de soluções mirabolantes, o que se tem para o momento é o de sempre: as máquinas dos ares-condicionados do lado de fora dos prédios e eles fazendo o ar circular nas repartições. E tudo parece como deveria ser. A não ser pelo fato de os ares-condicionados continuarem a cair. Despencam dos prédios. É muito material enferrujado. É muita lata. É muita carcaça. Será que nunca se imaginou uma solução mais inteligente para lidar com o calor? Construíram prédios divididos em cavernas minúsculas: umas em cima das outras, divididas em andares, divididos por corredores. Com um botão na entrada da caverna que se aperta e a pessoa do lado de dentro grita. Ou se esconde, pra falar a verdade acho que se esconde na maioria das vezes. E isso se repete. E ao mesmo tempo assusta. Pois o prédio é o lugar da reclusão e se a pessoa chegou até a campainha é porque já passou pelo portão de entrada, pela porta de entrada, pelas escadas ou pelo elevador. E essa sensação de intimidade que se anuncia quando a campainha toca se torna pegajosa, a maioria das vezes é inesperada. Uns lidam melhor com isso, os outros não (mas independe disso), pois o silêncio é a chave que os mantém reclusos. Entocados. Intocáveis. E o mais assustador nesta história toda é: pra cada caverna um ar-condicionado. Muitas vezes mais que um. Distraiu-se um pouco, muito, muito pouco, um pouco na medida certa, mas logo recuperou o olhar. Pois os ares-condicionados, agora, resolveram brincar de ola, despencam um a um, em onda, oooolllllaaaaa. Ah… já tinham brincado de efeito dominó na quadra anterior. Ola, efeito dominó, corredor polonês, videogame, fliperama qual a diferença? Nenhuma. Simples assim, nenhuma. Talvez seja necessário reforçar a sentença, nenhuma. O que sobra é que as brincadeiras são cada vez mais intensas. É disso que sabe, ou talvez apenas sinta e pensa que sabe. E o homem que caminha agora caminha irritado. Aí para. Para por um instante, olha para trás e se assusta: as sucatas constroem morros planaltos planícies de lata. Mas não dá para ficar parado. Segue. À frente, na luminosidade, tem a impressão de que algo está mudando na paisagem, emociona-se, chega a ficar um pouco angustiado, sem saber ao certo o que é, controla a respiração para o coração não saltar para fora pela boca. Fazia tempo que não sentia isso e não imaginava que poderia chegar até onde chegou. Talvez haja ali na frente, naquilo que ele não vê e não consegue imaginar o que é, uma fonte de respiro, um oásis, um deserto, um sertão, ou algo que seja verde, sei lá, menos concreto e lata, mais (de) qualquer outra coisa… O mundo esclarecido pode estar logo ali na frente. Chegou a hora de enlatar os medos e devolvê-los às prateleiras do mercado. Respira fundo. E respira de novo. E mais uma vez. Respira. Puxa o ar de onde não tem. Ele parece ser… uff… Não deu tempo. O ar-condicionado o acerta na cabeça. Ele apenas cai. Ou se afunda. Em cheio. O ar-condicionado caiu do edifício do lado esquerdo. Ou do direito? Pode ser. Não se sabe. Ninguém sabe. E isso já não interessa mais. Sabe-se apenas que o moço deu entrada com vida no hospital e atravessou o corredor polonês, fliperama, videogame, sorrindo. O médico diagnosticou coração, sem especificar se havia sido infarto, sopro, mal súbito, falta de amor. No quarto a que foi levado, faltando quarenta e oito segundos para o tombo derradeiro – ele sabia, os outros não –, comentou gentilmente com a enfermeira que a sensação térmica da sala o incomodava um pouco, a sala parecia gelada, vazia, branca, neurastênica, sem contraste nas paredes, muito, mas muito mais fria do que estava acostumado… e ouviu o assovio, mais uma vez.

 

demetrio
Foto de Ayrton Cruz

*Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em literatura, professor universitário, músico e escritor. Publicou, dentre outros, “Mas é isso, um acontecimento” [Editora da Casa, 2008, poemas], “15’39”” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas], “Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé” [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio], “Poema da Maria 3D”[Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book], “Ares-Condicionados” [Nave Editora, 2015, contos] “A de Antônia” [Miríade, 2016, infantil]. Co-diretor dos documentários “Só Tenho Um Norte” [2008] e “Cerveja” Falada [2010]. Com a banda “Repolho” lançou 4 CD’s entre 1997 e 2009, e o compacto em vinil “Sorria, meu bem! (oh Sweet Lucy)” [2004]. Com o projeto “Irmãos Panarotto”, com Roberto Panarotto, lançou os CD’s “2Violão e 1Balde” [2004] e “Chamando Chuva” [2012]. Vive em Florianópolis-SC.

 

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