Lia o livro como se lesse um tabuleiro ouija. A frase em “Linha M” da Patti Smith me fisgou de imediato. Eu lia o livro como se lesse um tabuleiro ouija no mesmo momento em que li a frase sobre ler um livro como se lesse um tabuleiro ouija. Ela falava de “Crônica do pássaro de corda”, do autor japonês Haruki Murakami, com uma metáfora poética que me interessou. Comprei o livro e terminei as suas 766 páginas há sete dias.

Aos poucos, sinto a história decantar, mas não fecho as suas pontas, revisito cada pedaço, olho com atenção cada trecho, como se fosse algo delicado que eu não posso desembrulhar com pressa. O livro de Patti Smith é um diário de sonho e memória. Murakami e seu pássaro de corda são um mergulho nas profundezas do inconsciente.

Afinal, o que é a consciência? Ciência e filosofia se debruçam sobre esse mistério que ninguém consegue responder. Transitar por entre as narrativas entrelaçadas de personagens que avançam entre a fantasia e a realidade. Ou seria tudo real? Mesmo os sonhos? Se entrarmos no escuro profundo conseguimos atravessar paredes? Mundos? Universos? Conseguimos desfazer o corpo e nos liquefazer em um novo ser e estado de consciência? Afinal, o que é a consciência? Onde ela está?

Toru Okada procura seu gato, Noboru Wataya, que recebeu esse nome em homenagem ao cunhado, irmão da sua esposa Kumiko. Noboru Wataya. O homem que usa uma máscara, ou, ao menos é essa a percepção do Sr. Okada. Kumiko está preocupada com o sumiço do gato e através do irmão chega até Malta Kanô, uma misteriosa mulher que “estuda” as águas e é uma espécie de vidente. Pessoas e situações inusitadas começam a surgir na vida de Okada, que dá uma reviravolta. A sua busca está longe de terminar e passa a ser não apenas pelo gato, mas por sua própria esposa, que some sem deixar rastros.

Em uma Tóquio da década de 80, Okada puxa o fio de um novelo de uma história muito maior do que a sua tragédia individual. Com uma habilidade cirúrgica, Murakami nos insere em meio a um Japão que atravessa guerras, cujos efeitos reverberam para muito além de um único espaço-tempo, afetando inúmeras vidas, revelando a crueza da violência humana. A escala, a dimensão, a amplitude. A profundidade do escuro. As águas que movimentam o fluxo da vida. Okada, um jovem desempregado, sem perspectivas, desce ao fundo do poço e emerge outro.

É difícil falar sobre certos livros, esse ainda me exige silêncio profundo e olhos fechados para pensar melhor. Prefiro deixar aqui as palavras do próprio autor:

“Havia uma infinidade de estrelas, e o céu noturno era extenso e profundo. Pareciam estranhos corpos esmagadores, que me engoliam, me envolviam e me davam vertigens. Até aquele momento eu achava óbvio que o chão em que pisava era firme e que duraria para sempre, e não perdia tempo com a questão. No entanto, na realidade, a Terra não passava de uma pedrinha que flutuava num canto do universo. Na comparação com a grandeza do universo, não passava de um andaime frágil e provisório. Ela poderia ser destruída com todos os seres vivos da noite para o dia, por uma mudança sutil da gravidade ou por um breve lampejo de luz. Ao sentir a pequenez e a fragilidade da minha condição, fiquei paralisado sob aquele deslumbrante céu estrelado”.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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