Em ensaio de André Bueno acerca da prosa de Ítalo Calvino, pesco com anzol pequeno um detalhe que me serve a título de abertura para esta “colheita dos dias”.

É notável o gosto de Calvino pelas combinações geométricas, pela construção formal do texto literário. Assim como também é notável em sua literatura o gosto, não menos sutil e preciso, pela ironia e pela posição ética onde a leitura mais apressada veria apenas os jogos formais da imaginação. (BUEN0, 2020, p. 237).

Por mais que me venha à cabeça um processo neobarroco de construção narrativa (semeadura e recolho), o que me atrai é uma intertextualidade premente que aponta para o velho bruxo o ponto de equilíbrio na construção do texto. O movimento e o que se imagina do desenho de palavras que levantam paredes se podem observar, a título de um voyeurismo puro e simples:

Deixo-me, então, olhar para o retângulo frio, cujo real sentido não quero entender. Súbito, uma inclinação do sol poente movimenta os veios rosados do mármore: um sangue, uma seiva, um sinal de vida. Revejo a figura granítica de Modesto, as artérias repentinamente paralisadas, a face indiferente aos meus apelos, quando partia para a viagem final. (ASSIS, 2012, p. 13-14).

A indesejada das gentes surge por trás da imagem do crepúsculo e se constrói outra perspectiva que não apenas a do corpo presente, mas da dialética da ausência que apresenta o legado de um Brás Cubas a dialogar com o leitor. Não me parece se estilizar um efeito irônico como a prosa de Machado conduz, embora possa se enxergar um feixe de luz que se espace pelo construto de Assis (Valesca). “Os olhos de meus pais eram candeias postas no meio da sala, devastadores. Ao olhar de Modesto, meu corpo adquiria consistência, e as sombras íntimas não transpareciam”. (ASSIS, 2012, p. 21).

Valesca é brasileira, antes de qualquer coisa, gaúcha. Natural supor que ao lado da influência de Machado repouse outra, ao lado, abaixo da figueira grande. Penso que os sete volumes de Proust, que saem em busca de seus tempos idos, encontrem equivalente nos sete (a edição que tenho conta com sete volumes) de Veríssimo, enfeixados em “O tempo e o vento”. A saga do brasileiro coloca a figura feminina sempre à espera de algo, de alguém, instantâneo captado na obra em questão.

Esperar a chegada de Modesto passou a ser, com o tempo, minha principal ocupação. Ele, o único acesso àquele mundo do qual eu me sentia excluída. A chegada de seu pai me aproximava, de algum modo, das intrincadas virtudes domésticas. (ASSIS, 2012, p. 24).

Bibiana, Maria Valéria e o conjunto das personagens femininas de Veríssimo fazem coro ao que Valesca traduz no contemporâneo. Em relação a Machado, pode se contar com o olhar de Virgília que observa seus delírios finais, como também a fina ironia do narrador, às vésperas do desencarne.

A instabilidade de ébrio e a imobilidade de defunto (ainda que esta seja passível de estar sendo corroída pelos vermes, a quem o romance niilista é dedicado, “et por cause”) são, portanto, as posições antípodas que modelam a caracterização metafórica do corpo bifronte do narrador  de Memórias Póstumas. (SANTIAGO, 2020, p. 69).

A casa em que será guardada a herança do falecido traz elementos para uma reflexão mais aprofundada acerca das relações do patriarcado. Se pensarmos o sótão, analogamente à estrutura racional e os porões, com o que se costuma esconder (tento evitar relações psicanalíticas – mas não consigo), “desejo que o porão não represente mais que um alicerce da casa. Daqui a anos, eu morro, vem o advogado, derruba-se o que era porta e repartem-se os bens conforme estiver escrito”. (ASSIS, 2012, p. 42).

Não há como fugir de Érico Veríssimo, até porque “no pátio interno, a figueira grande a estender sua sombra desde a casa senhorial até os escravos mortos da senzala” (ASSIS, 2012, p. 52). O mesmo pode ser dito com relação a Machado, muito criticado por não se colocar como (insistente) crítico da escravatura, segundo parte da crítica especializada.

Numa festa, em sua casa, o menino Brás Cubas escuta dois amigos da família conversando sobre um carregamento de mais ou menos vinte escravos, que estaria por chegar. Nessa época, trinta anos após a abolição, o tráfico transatlântico já fazia parte da história e das memórias da classe senhorial. (CONFORTO, 2012, p. 113).

Machado de Assis, escritor.

Não me parece desprovida de sentido a referência a Machado de Assis como historiador. Particularmente, o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” torna-se emblemático. E por inúmeras razões, dentre as quais pela posição icônica em que se discutem causas e efeitos relativos às doutrinas científico-filosóficas da segunda metade do século XIX. “É intrigante que a personagem do romance concebida para metaforizar as representações difundidas pela ciência racial tenha sido denominada – Eugênia – a ‘bem nascida’”. (CHALLOUB, 2003, p. 129-130).

Pois a narrativa de Valesca vai colher naquele canteiro também esta referência. “Cega eu não deveria ser, com certeza. O padrinho, ao menos, não o era. Desconfiado, o pai foi em busca da verdade. E a verdade estava atrás da moita onde encontrou os dois, feitos cavalo e égua”. (ASSIS, 2012, p. 71). Aqui me parece uma mistura de Virgínia e Eugenia, dois pilares das reflexões sobre a condição feminina em Machado de Assis. Mas porque essa mescla, “o que Virgínia escondia, quando me acusou de cega? Qual a mensagem no olhar febril de meu filho? E Diogo, por que me espiava, atrás de cada arbusto, ao pé de toda janela?” (ASSIS, 2012, p. 82).

O jogo das referências entre Machado e Valesca (os dois – de Assis) busca entrelaçar os processos criativos à luz do anacronismo contemporâneo. “(… não é simples colocar Machado no atual estágio da questão feminina em estudos de ‘gender’) que [Virgínia] faz a Brás Cubas”. (SANTIAGO, 2020, p.83).

Esse intrincado repositório conceitual vai e vem nas relações metaliterárias que se estabelecem nos diálogos contemporâneos. “Eugênia me perseguia com chás e discreta compreensão. Não era isso o que eu queria: os esmerados chás não preencheram o meu vazio renascido; de compreensão, não morriam os vermes que me roíam por dentro”. (ASSIS, 2012, p. 83).

Nada como a passagem do tempo. E o olhar de quem viveu bastante e se posta a relembrar na mastigação desgostosa do que passou e que não volta mais. “Deus meu! Não é que a madrugada nos pegou ainda nos balanços da cadeira, nos trâmites da expiação?” (ASSIS, 2012, p. 90). A cadeira de balanço que atravessa gerações na prosa de Veríssimo surge no cenário das lembranças. “A ordem de murar as janelas do porão, de abrir um buraco maior na antiga porta. Estranhou o retângulo caiado na parede (ali, mais tarde, você e eu iríamos reproduzir, com pobres palavras, uma juvenil indignação)”. (ASSIS, 2012, p. 106).

Talvez seja esta uma imagem que fique para a posteridade. Que Assis seja!

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Valesca de. A colheita dos dias. 3. ed. Porto Alegre: 8 INVERSO, 2012.

BUENO, André. Literatura e vida nas cidades: os sentidos da imaginação. In: Formas da crise. Estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2002.

CHALLOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CONFORTO, Marília. O Escravo de Papel. O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX. Caxias do sul, RS: EdUCS, 2012.

SANTIAGO, Silvino. Fisiologia da Composição. Gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: CEPE Editora, 2020.

[1] Literatura e vida nas cidades: os sentidos da imaginação.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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