Com grande aceitação da crítica e uma fria recepção do público, “Ave César” filme mais recente dos premiados irmãos Joel e Ethan Coen, a comédia sobre os bastidores do cinema americano dos anos 50 tem em seu subtexto mais que uma homenagem à era de ouro do cinema, uma crítica sobre a plasticidade da vida nas telonas de uma forma bem humorada.

“É claro que eles são loucos, é tudo faz-de-conta, pelo amor de deus.”

Um dos personagens exclama ao discorrer sobre a sanidade daqueles que trabalham no meio audiovisual. Para os olhos do aviador em questão, o cinema nada mais é do que baboseira de gente louca e desocupada. Sentado à sua frente, o outro personagem, o protagonista, vivido por Josh Brolin (Milk, Vício Inerente, Onde os fracos não tem vez), tenta conter a frustração ao ouvir palavras tão negativas sobre seu trabalho. Ele, sentado a fitar o aviador, é um fixer, o homem reponsável por lidar com escândalos e outras situações capciosas para celebridades e estúdios de cinema.

Com horários extraordinários, situações perigosas e muito stress, Eddie Mannix, seu personagem, está em conflito com seu ofício. Procurado pela Aeronáutica para um cargo de importância, Eddie está confuso sobre a natureza de seu trabalho, de sua obrigação como carrasco e salvador para as excêntricas estrelas do mundo do entretenimento nos Estados Unidos dos anos 50. Entre encontrar maridos para atrizes grávidas desquitadas e arranjar jantares para “mudar a imagem” de suas estrelas, Eddie descobre que a maior estrela de seu estúdio – George Clooney no hilário e caricato Baird Withlock – fora raptada de seu trailer.

As vésperas de gravar a última cena de seu mais novo filme de capa e espada “Ave César! – A história de Cristo”, Eddie precisa encontrar Baird antes que sua ausência seja notada e o escândalo caia na primeira página dos jornais. Pressionado pelo chefe do estúdio, pela nova proposta de emprego e seus próprios princípios, Eddie – como a maioria dos protagonistas do cinema dos Irmãos Coen, sente-se encurralado por uma força que ele ainda desconhece.

Na velha tradição do cinema dos Coen, Eddie conversa com padres, rabinos e até mesmo sua esposa – com quem vive uma relação de amor e ódio desde que fora proibido por ela de fumar cigarros – em busca de qualquer tipo de direcionamento. Abandonado ao seu próprio destino, Eddie luta internamente com a função de salvador dos pecadores que lhe fora incumbida, por Deus ou pior – pelo chefe do estúdio, persona presente somente nos telefonemas, a voz que susurra aos ouvidos de Eddie as próximas ordenanças de sua missão na terra.

A trilha sonora de Carter Burwell, repleta de vocais típicos da música sacra, imprime no filme um senso de danação e penitência e relaciona diretamente à figura de Eddie com a de Cristo. Antes uma crítica ao nosso próprio martírio do que à figura religiosa em si, “Ave César!” se utiliza da alegoria para mostrar quão farsesca é a luz do sol dos holofotes e quão fina é a camada do mundo dos sonhos. Em sequências musicais criadas únicamente para expressar a capacidade do cinema em roubar nossa atenção e entreter, os irmãos permeiam o roteiro com uma certa amargura e cinismo que tornam todas as piadas em cena uma crítica a própria fábrica do cinema.

Majestosamente fotografado, “Ave César!” imprime na tela belíssimas  imagens e fazem da experiência visual um deleite. O elenco, que conta com Jonah Hill, Tilda Swinton, Ralph Fiennes, Scarlett Johanson e Francis Mcdorman – todos explêndidos em seus papéis – reforça a qualidade deste filme que teve dificuldade em relacionar-se com o público. Talvez por referenciar um cinema hoje não muito apreciado – os musicais e light movies dos anos 50 – e calcar-se no universo dos bastidores, o filme acaba por direcionar sua atenção quase que completamente para aqueles envolvidos com o mundo do cinema.

Ainda que possa ser apreciado pelos fãs dos Irmãos Coen e aos amantes da comédia ciníca que eles propôem, o filme é de fato uma carta de amor – uma muito divertida, por sinal – ao cinema e suas personalidades. Eddie Manix, inspirado em um Fixer real, é uma das inúmeras referências às pessoas que fizeram a fama dos estúdios e popularizaram o cinema como forma de entretenimento. Mostrando mais uma vez que comédias podem ser feitas com classe e que entretenimento também pode ser arte, Joel e Ethan Coen realizam mais um trabalho competente e inspirador.

Sem nunca perder o tom cômico, suas alfinetadas ácidas jamais saem da linha e mesmo as mais duras críticas – onde até mesmo a “pessoa íntegra” do estúdio é um personagem e os roteiristas mal pagos são na verdade comunistas que se divertem fazendo propaganda do partido  secretamente em seus filmes – se encaixam num roteiro aparentemente simples, mas repleto de mensagens para se colher nas entrelinhas.

A jornada de Manix em busca de uma resposta para seus problemas é cativante e seu personagem carrancudo e carismático entra com graciosidade para a coleção de desajustados do universo dos Coen. Pressionados entre a presença divina e a lei dos homens, seus protagonistas parecem sempre encontrar nesta dura jornada o humor necessário para seguir adiante. Mesmo sem algo concreto para se agarrarem, seguem sempre verdadeiros aos seus princípios e admiram com humor as pequenas provações apresentadas pelo caminho.

Assim como “Crepúsculo dos Deuses” de Billy Wilder, feito sessenta anos atrás, “Ave César!” é inteligente e bem elaborado ao tecer sua crítica sobre o universo cinematográfico, e cria personagens decadentes mas cativantes, revelando a realidade por trás da cortina de fantasia e espetáculo do cinema. Como o César e seu império que eventualmente pereceram ao tempo, os Coen permeiam o filme com o sabor do crepúsculo eminente destes Césares que ergueram a indústria do cinema.

Comentário

  1. Sensacional o filme, assisti ontem, me surpreendi ao ver seu texto aqui no dia seguinte! sincronicidade!
    sou fã dos irmãos Cohen. vc captou o essencial do filme com muita clareza, belo texto!

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