Por Wellinton Cunha*

Não me considero uma pessoa mórbida. Tenho pavor de hospitais, necrotérios e salas de espera com televisores ligados na Globo o dia inteiro. Conto nos dedos da mão esquerda os filmes de terror que realmente me agradaram e festas de halloween que me empolgaram. Entretanto, gosto de visitar um cemitério em particular, de vez em quando, sem razão aparente. Veja bem, não considero isso um traço de morbidez, está mais para, digamos, uma excentricidade.

Trata-se do Cemitério Recanto da Paz de Sinop, cidade em que cresci, mas não virei gente. É um cemitério lindo, localizado na Avenida da Saudade (hoje a avenida tem o nome de um bispo qualquer, mas acho o primeiro nome bem mais poético e sigo firme com ele) formado por um corredor infinito de árvores que atendem pela alcunha de angelins-pretos – como minha tia me informou – frondosas, de galhos retorcidos e fantasmagóricos, que é como uma árvore de cemitério deve ser, suponho eu. Foi planejado para ficar um pouco às margens da cidade, mas a cidade cresceu tanto que me parece agora que é ela que fica às margens dele. Tenho a sorte (quantos a tem?) de não ter nenhum amigo querido ou familiar enterrado ali, talvez isso justifique o fato dele não me assombrar.

Não lembro se a primeira vez que fui visitá-lo foi com minha mãe em algum dia dos finados, ou quando fugia do meu primeiro emprego de office-boy e ficava rondado por lá, esperando as horas passarem mais rápido ou quando ia depois da aula com colegas beber refrigerante ou cerveja naquela calmaria descompromissada.

Recordo-me, porém, que uma vez, há algum tempo, me deitei num dos bancos e comecei a tirar fotos dos galhos das árvores lá de cima. Não vi que o coveiro do local se aproximava e levei um baita susto, quando ele me perguntou: “tá tirando foto das armas?”. Sentei-me pronto para responder “meu senhor, não é por que sou pobre e pardo que carrego arma”. Mas ele tinha um semblante ingênuo que me desmontou. Demorou mais um minuto para a gente se entender na nossa confusão linguística – ele tinha o sotaque caipira de algum lugar desse Brasilzão – quando finalmente compreendi que perguntava brincando se tirava foto das almas, não das armas.

Outra vez, estava caminhando entre os túmulos e calculando mentalmente a idade das pessoas no dia da morte (“coitadinha, essa aqui morreu com três dias de vida”, “eita, esse aqui fez hora extra e morreu com quase cem”, etc), quando vi um rapaz sentado, angustiado, no meio fio da alameda, apesar de ter um banco atrás de si. Ele me perguntou se eu tinha cigarro, respondi que não. Antes que falasse qualquer coisa, percebi que queria mesmo desabafar e me contou sobre sua vida. Estava ali para espairecer a cabeça, pois tinha brigado feio com a mãe, que amava mais o irmão presidiário do que ele. Ela havia passado o natal com o outro filho na cadeia, aquilo o ressentia por que ele era um bom filho há quatro anos e ela não ligava para ele. Indaguei sobre o que havia ocorrido nos últimos quatro anos. Respondeu-me apenas que havia se envolvido “com coisa errada”, mas depois de perder a mulher e levar seis tiros de um cara que pensava ser seu amigo, havia deixado de ser bandido e estava todo esse período sem sair de casa. “Era pra eu tá debaixo da terra igual eles e eu queria tá”, disse, apontando para os túmulos. Agora, sua ex-esposa tinha um novo marido e uma filha linda, me contou. Muito religioso, disse ainda que tinha certeza que o demônio atentava ele, por isso não conseguia ser feliz. Aconselhei o que se aconselha nessa hora: procurar ajuda médica e tentar fazer as pazes com a família. Ele debochou e me disse que nunca mais ia pôr os pés em casa, ia cair no mundo e começar uma nova vida. Nunca mais o vi, mas espero que tenha conseguido.

Essas visitas e esses personagens me tranquilizam. Quem visita cemitérios ou anda de ônibus diariamente tem sempre uma história pra contar. Mas a maioria das vezes gosto mesmo é da solidão, de sentar sozinho e ficar cogitando como, quando e onde vou morrer. Embaixo dos angelins-pretos, os bancos duros do século passado ainda possuem o slogan da antiga administração da prefeitura em que lê-se “a caminho do terceiro milênio” – seriam as pessoas ou as almas que estariam nesse caminho? Sinto-me contente com minha filosofia de botequim, pego minha bicicleta e parto.

*Wellinton Cunha é jornalista, cinéfilo, roteirista, cafecólotra e advogado 
do Woody Allen.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here