Por Angélica Almeida*

É horário do almoço e ela senta pra comer sozinha, liga a tevê e assiste ao jornal que mistura sangue e violência com o arroz, feijão e bife. Põe tudo no garfo, enfia goela a dentro, bebe um suco que é pra ajudar a descer. A tela lhe faz companhia, almoça, janta e preenche o vazio daquela casa durante todo o dia. Todos os dias. Naquele horário lhe traz notícias de um cotidiano imundo, com algo alegre no final que ajuda a esquecer o que foi dito antes. Ameniza as atrocidades, assim a vida e as pessoas não parecem tão ruim. Ligada em volume alto ajuda a abafar os próprios pensamentos confusos, ela pode mudar de canal, zapear, sentir que tem alguma autonomia. Mas tanto faz, as notícias já não incomodam e ela tá pouco se lixando pro que acontece fora daquela casa.

A tevê coloca tudo no mesmo prato, mistura o sério com o trivial, o fictício com o real e não permite que ela diferencie qual o momento de rir e de chorar, não permite que ela se sinta só, não permite que ela sinta, não permite nada. E ela não se esforça, reage com uma indiferença bovina a uma notícia sobre um estupro, um show de dança, uma descoberta científica e um caso de corrupção. Entorpeceu.

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A memória, como a visão, é uma questão de diferenciação, e se quiser que uma recordação permaneça é preciso protegê-la dessa confusão de imagens que assolam o cotidiano. Ela já viu tantas coisas durante o dia que se esqueceu de como foi o começo dele. A tevê provoca o esquecimento, funciona como um difusor da realidade, cria uma espécie de véu, elimina os ruídos do mundo (assim como a muzak das lojas e supermercados), tranquiliza e embala a vida de forma que agora ela dorme diante da tela, babando, sozinha, no sofá.

Talvez se possa dizer que o papel da televisão é fazer esquecer, deixar as carapaças mais espessas, a memória mais fraca, o senso crítico menor, a humanidade também. De tanto ver a imagem do menino com fome já se acostumou, passa por ele na rua, mas já o conhece. Não mais espanta, não mais reage, nem estende a mão, uma moeda, um olhar, nada.

As imagens vêm e vão, inundam, mas não estão ali para fazer significado algum. Estão para serem vistas, não olhadas. Ou olhadas, mas não vistas? Tanto faz. Ela não vai parar pra pensar sobre isso mesmo. Pensar dá trabalho, ler, ver um filme ou reagir também. São coisas que exigem um mínimo de concentração, diferente da tevê. E ela está cansada demais, confusa demais pra se cansar mais um pouco. E assim segue, dormindo e acordando num sofá babado, com a tela ligada em volume alto que é pra espantar os ruídos, os pensamentos, os sentidos, a vida.

*Angélica Almeida é fotógrafa e mestranda em estudos de cultura contemporânea

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