Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Hoje quero falar de livros. De um livro, especificamente, que aprendi a gostar e dar um tratamento especial, por inúmeras razões. Trata-se de Dias e Dias, de Ana Miranda, romance de um amor (imaginário) entre uma moça do interior do Maranhão, Feliciana, natural da cidade de Caxias e o poeta Antonio Gonçalves Dias. Caxias é uma bela cidade. Conheci no final do ano passado, muito em função da leitura dessa obra. Sempre que encontro em sebos exemplares do romance, compro-os, quer seja para presentear, quer seja para tê-los em casa para empréstimos aos interessados em uma boa leitura. No momento tenho três exemplares que estarão à disposição de alunos de um curso de extensão que oferecerei em breve no campus Octaíde Jorge da Silva, do Instituto Federal de Mato Grosso, aqui em nossa capital.

diaSegundo Massaud Moisés, no conjunto de qualquer romance observamos três planos distintos, mesmo que, isso seja apenas uma ótica operacional; de qualquer forma faz-se importante o registro. No que diz respeito ao plano extrínseco, é de se observar que o contexto social referente ao tempo narrado é o do romantismo pulsante que engloba o ano de 1824 (nascimento de Feliciana) até 1864, ano da morte de Gonçalves Dias. É essa a duração do enunciado. As características básicas do estilo de época são coladas à personagem protagonista que assume o tom melancólico, bem como a idealização de um amor perfeito, o castelo de nuvens anunciado no prólogo dos Últimos Cantos de Gonçalves Dias.

Quando se fala de um plano intrínseco, que una as ideias, temas e problemas da narrativa, há que se destacar os elementos que formam a temática romântica e dão suporte ao discurso premente do momento narrado. O amor impossível, o respeito extremo à autoridade paterna, o devir social instituído. É necessário se destacar o papel da mulher na sociedade brasileira de então. E nesse caso, a moldura da janela, trabalhada na questão espacial, dá conta de delimitar o papel feminino na sociedade de antanho. Inconscientemente, os desejos, volúpias e gracejos da mulher são estereotipados pela ingenuidade da narradora em seus momentos de devaneio.

sempre-um-papo-com-ana-miranda-890x395A mesma ideia de moldura pode ser entendida como uma transição do olhar interno para o externo da construção narrativa. É o que acontece em Dias e Dias. Toda a narrativa é construída com o foco em primeira pessoa. Uma ambientação reflexa que domina o romance do início até quase o final. Somente o último capítulo, o “Epílogo” é narrado em terceira pessoa. Fugindo ao controle de Feliciana, o encerramento da narrativa sem cair em um lugar-comum provoca por parte do autor a necessidade de outro foco narrativo, um olhar externo à problemática para o desfecho. Dessa forma, a historiografia literária do período sente-se contemplada pela estrutura determinada.

Quanto ao plano intrínseco da obra, as questões manifestas ou camufladas pela narradora são todas dignas da composição romântica. Os temas, motivos e condutores, bem como a cosmovisão imanente da escritura nos encaminham para uma visão idealista sobre a qual se edifica a escrita.  Questões relativas à consciência reflexiva da protagonista tomam conta do espaço e inserem-se em um contexto no qual a mulher tinha seu lugar social determinado por questões deterministas, sem margem para qualquer desejo ou devaneio.

Formalmente nos deparamos com uma linguagem extremamente romântica, com poucas brechas para a inserção de diálogos, uma vez que tudo o que sabemos de maneira externa ao discurso da protagonista nos é repassado por filtros que camuflam interesses e desejos. Os capítulos são pequenos e a caracterização das personagens encaminha o leitor para um mosaico do qual surge uma imagem protagonista de grande alcance e dos demais personagens como sombras resgatadas do fundo de um baú repleto de traças, elementos malcheirosos, mofo, de onde, segundo os filósofos das miniaturas, como Bachelard, nos dão a imagem da memória como algo estruturado como um “armário de lembranças”.

anamirandaSaindo desse armário, as reminiscências da personagem presentificam-se ao longo do texto em um espelho da poética gonçalvina, o que faz da obra um caleidoscópio sob o qual circulam os paradigmas do romantismo brasileiro, decalcados na escritura de Ana  Miranda. Quanto aos aspectos formais, a construção narrativa aproxima-se em muito da estrutura dos diários íntimos, gênero esse que sempre fez parte do cotidiano das moças casadoiras do século XIX, aqueles projetos de mulher para os quais a sociedade positivista guardava com carinho atribuições dignas de quem era criada para ser eternamente “bela, recatada e do lar”; mas isso seria assunto para uma outra oportunidade. Vale a pena se debruçar por essas páginas adoráveis que nos projetam para um lugar dentro da gente onde sempre haverá espaço para algum tipo de amor.

REFERÊNCIAS

 

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de LEAL, Antonio da Costa

MIRANDA, ANA. Dias e Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MOISÉS, Massaud. A criação Literária – Prosa I. 21 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

*Luiz Renato de Souza Pinto, professor, poeta, escritor e ator performático.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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