Por Ivy Menon

Geraldo morava do lado da minha casa, quando éramos adolescentes. Ele, um pouco mais velho. Gostávamos de Raul e dos Secos e Molhados. Quando e eu meus irmãos resolvíamos fumar, para contrariar nosso pai, corríamos para a casa de Geraldo. Eles eram ainda mais pobres que nós. Viviam na maior miséria. Os quatro irmãos homens, mais o pai e mãe, formavam a família. Ninguém lia ou escrevia. Todos, analfabetos. Nós íamos para a escola, quando dava. Fizemos o Ensino Médio. Mal completavam dezesseis anos e extraíram todos os dentes para colocar dentadura. A maioria ria dentes brancos, alinhados e maiores que a boca.

Tinham perto de um metro e sessenta e cinco de altura, portanto baixinhos para os padrões italianos da minha família, e lutavam, literalmente. Os quatro irmãos formavam duas duplas de luta-livre, conhecida também como vale-tudo. Eram bons. Os músculos bem torneados, a despeito da comida escassa e da pouca idade, representavam o Município, em toda a Região. Eu tinha medo, mesmo quando me diziam que era faz de conta ou mentirinha.

Na verdade, eles lutavam vale-tudo nos fins de semana, porque durante os dias úteis a luta era ainda maior. Como eu e meus irmãos, trabalhavam como volantes, diaristas rurais ou boias-frias como éramos conhecidos. Subíamos em um caminhão, descoberto, antes das seis da manhã e, às vezes, rodávamos cinquenta quilômetros apinhados, um segurando no outro. Uma corda amarrada de uma ponta à outra da carroceria do caminhão velho e pronto: a mão direita agarrava a corda, a esquerda, o ombro ou o braço do amigo. Formávamos um bloco para sobreviver às curvas, aos buracos, à chuva e ao vento gelado do sul. Nós nos protegíamos. Paredões humanos presos à mesma sina. Reféns de garantir “o pão nosso de cada dia”.

Sábado e domingo eles se tornavam heróis. Aquelas centenas de pessoas amontoadas nas arquibancadas de madeira, do campinho e um ringue no meio. Ganhavam uns trocados que ajudavam na compra da comida. Muitas vezes, recebiam para perder. E perdiam. Que diferença haveria perder, no ringue, o que a vida lhes roubava todos os dias? A dignidade é conceito de quem passou da fase da barriga vazia. Dar o peixe vem antes de se ensinar a pescar, já que a fome impede o aprendizado, qualquer que seja. Até mesmo o da pescaria.

Geraldo gostava de mim, diziam. Eu, quatorze anos, ele, dezoito. Muitas vezes, estava em casa, lendo uma fotonovela escondida do pai (“isso é coisa de biscate”, falava ele) e, de repente, o Geraldo me gritava; “Ouve, lindinha, tá tocando nossa música, no rádio”. Era o Raul com sua “Metamorfose”. Vivíamos o vale-tudo e éramos felizes. Alienados. A miséria tira também o foco, rouba a visão da realidade e o direito de se buscar alternativas que libertem. O estômago fala mais alto, aliás, o único som que se consegue ouvir, quando faminto, é o ronco do estômago vazio.

Eu e minha família nos mudamos da cidadezinha da nossa nudez. Dos amigos de infância, poucos sobreviveram. A maioria morreu antes dos quarenta. Mentira que você constrói o próprio caminho. Mentira que só depende de você. Faço parte dos dois por cento dos boias-frias que saíram, de lá, e da única família em que os filhos foram para a Universidade. Não fossem meus pais brancos e incentivadores ou se meu pai não fosse um jovenzinho que acreditava no futuro dos filhos, tenho certeza de que eu não estaria, aqui, contando histórias. Teria ficado à beira do caminho ou na zona de meretrício. Ou nas mãos de um peão alcoolizado, a apanhar na cara, como tantas meninas que conheci.

Geraldo permaneceu por mais um tempo, naquela cidade. Não foi muito longe. Eu sempre procurava por notícias dele e da família. Passou a fase do vale-tudo. Ninguém mais se interessava por aquilo. Nem mesmo existia o MMA. As máquinas substituíram os braços escravos nas lavouras de soja, de café e de algodão. Geraldo não construiu família. Repetia: “a ninguém deixarei, o legado da minha desgraça”. Decorou. Eu lhe havia contado sobre Machado de Assis.

Um dia, Geraldo não quis ir à missa, porque se sentia indisposto. Semana difícil, não conseguira trabalho. A mesa quase vazia. Não entendia os pais irem à Igreja agradecer. Estava triste e preferia ficar sozinho. Na volta, depois de participar da eucaristia, a família chegou e encontrou uma corda pendurada no teto. E Geraldo pendurado nela.

Não há romantismo na falta do que comer. E meritocracia não cabe em estômagos vazios.

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

11 Comentários

  1. Ivy, Eu sei um pouco disso. Colher algodão com os aviões pulverizando bhc em nossas cabeças para matar as pragas da roça.Eu sei da historia de cada um comer sua pequena parcela, tinha que sobrar para os outros.
    Vejo um pouco de mim nos seus escritos.

    • Nossa, Silvia, nunc apoderia imaginar que tínhamos essa parte da história, em comum! Obrigada por me deixar saber! As pulverizações de BHC feitas por aviões eram realmente terríveis! Meu Deus! Abraço carinhoso!

  2. Estou impressionada com esta historia contada pela Ivy Menon. Tenho lido as postagens dela aqui no nosso grupo e todas me emocionam, principalmente a garra dela por ter superado tantas dores e ter uma narrativa brilhante. Uma grande mulher num mundo machista. Obrigada Ivy Menon.

  3. Desde a primeira vez que li um texto de Ivy me encantei. Tudo que ela escreve é muito revelador de um Brasil profundo, a forma poética com que ela consegue traduzir seus sentimentos e narrar sua própria história, é incrivelmente real, nós coloca no centro da cena com um envolvimento raro de emoções verdadeiras.

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