Ao longo da história, teóricos, filósofos, pesquisadores, se debruçam sobre o estudo da Arte (sim, com inicial maiúscula). Os conceitos variam, mas muitas vezes recaem em um lugar quase divino, onde a estética é a eterna busca pelo Belo (sim, também com a inicial maiúscula). O tempo passa e essa noção de Arte continua a ocupar as cadeiras da academia. Muito se fala do papel da arte, do valor da arte, da sua função, importância, da sua possibilidade contemplativa e pasmem – até sobre uma possível adequação, como se houvesse a maneira correta e exata para se fazer arte.

Além dessas normas e regras, a Arte (essa mesma, com inicial maiúscula) também precisa ter um papel. E se os ditos juízes da Arte disserem que isso não se enquadra naquilo que se classifica como obra de arte, sinto muito. Mas, há aqueles, com quem eu me simpatizo de maneira brutal. Arte? Tem que ter utilidade? Tem que ter sentido? Não pode ser “apenas” um mictório como o que Marcel Duchamp ousadamente decidiu nomear como obra de arte? 100 anos depois e ainda debatemos essa quebra de paradigma. Arte também pode ser um vaso de cerâmica que abriga nossos dejetos.

“A fonte”, o mictório de Marcel Duchamp

Alçar o humano ao divino ou lembrar o humano da sua efemeridade, da sua perenidade, da sua infalível biologia, da sua incapacidade de viver sem usar um vaso de cerâmica para defecar e mijar? Avançamos pela linha do tempo e chegamos em 1948. Wlademir Dias-Pino elaborava o primeiro livro-poema, livro-objeto, da história da arte. Trata-se de A AVE, que com transparências, perfurações, e gráficos, é um convite para que o espectador saía do seu lugar confortável de contemplação e possa se embrenhar pelas infinitas possibilidades artísticas e remontar novos sentidos ao livro, colocando-se ativamente no papel de autor.

Em seu livro “A cultura no mundo líquido”, Bauman questiona os juízes da Arte (a elite intelectual), a própria noção pré-estabelecida do que é a arte, do que é a cultura, e abre a reflexão sobre como a arte está e acontece em todos os lugares. A mesma noção que norteava a produção intensa e incessante de Dias-Pino, que estava em busca da democratização da arte, de uma linguagem assimilada universalmente.

Arte pode ser feita por qualquer um. Por mim, por você, pela sua avó, pelo seu vizinho, pelo seu colega de sala de aula. E aqui, chegamos ao ponto que provocou toda essa reflexão. Alunos de escolas públicas em Mato Grosso se uniram para sair do lugar comum, e de espectadores se tornaram autores, com releituras de obras de arte, em que trazem suas subjetividades e individualidades para o centro da tela. Dialogam com aquilo que há de eterno na arte, vencem a barreira do tempo e do espaço, e se colocam como obra de arte e artistas ao mesmo tempo.

A eletiva  “Tô no Quadro” nasceu de uma conversa entre a professora de inglês Aurika Eliza, e a coordenadora Dejanira Freitas Araújo da Escola Estadual Integral José de Mesquita, que, na ocasião, estava incumbida de orientar as propostas para o segundo semestre de 2019. “Neste dia, ela comentou que eu deveria basear minha Eletiva em obras de arte que seriam relidas, já que ela sabia do meu interesse pela arte. As obras seriam relidas, a princípio, através de aquarelas, mas, quando convidei a professora Thereza Helena de Souza Nunes (Artes) para participar do projeto, ela sugeriu que os alunos encenassem a releitura do quadro proposto e utilizassem o aparelho celular para fotografar o resultado”, conta Aurika.

Death of Ophelia de Jean-Baptiste Bertrand
Releitura de Death of Ophelia pelo grupo Girassóis de Van Gogh

De lá pra cá, tiveram que se adaptar com a pandemia, mas o sucesso do projeto garantiu sua continuidade para o terceiro ano seguido. Quando começaram, os alunos formavam grupos e assumiam a responsabilidade de toda a execução. Figurinos completos precisam ser montados: roupas, maquiagem, acessórios. Depois, escolhiam a locação para fotografar a obra. Em 2020, o formato foi adaptado para o on-line e cada participante era responsável por uma parte da concepção.

“O impacto deste trabalho foi multidisciplinar. A pesquisa, sobre a vida e obra do autor, muitas vezes só era encontrada em inglês. Teve até uma autora, Toshiro Mitani, cuja biografia só foi encontrada em japonês, isso fez com que os estudantes aprendessem a usar tradutores, a rever e editar o texto traduzido. Também expandiram o conhecimento de história, como, por exemplo, quando foi relida uma obra de Egon Schiele e descobriram a Gripe Espanhola e a tragédia familiar do autor, e ainda quando descobriram que já no século XVII houve uma pintora, Artemisia Gentileschi (1593 – 1656), cujas ideias eram francamente feministas”, revela a professora.

Figura em Azul de Tarsila do Amaral e sua releitura
O grito de Edvard Munch e sua releitura
Autorretrato com Colar de espinhos e beija-flor, Frida Kahlo e sua releitura

“O apuro no olhar e ampliação de horizontes, a compreensão de que nem tudo pode ser totalmente explicado, mas deve, sim, ser apreciado, veio através de obras de Jackson Pollock, Joan Miró, Salvador Dali, e muitos outros. A consciência dos estudantes em retratar as aflições do período em que vivemos, abordando temas como as queimadas em Chapada dos Guimarães e no Pantanal, na releitura de obras como, por exemplo,  “Lessons”, de Kenton Nelson e “Daughter with Cat” de Toshiro Mitani, ou a violência contra a mulher na releitura da obra “Golden Tears” de Anne Marie Zilberman, a crítica aos padrões de beleza impostos para as mulheres, nas releituras de “Psyche” de Berthe Morisot e “Death of Ophelia” de Jean-Baptiste Bertrand, dentre outros problemas que afligem nossa sociedade, surgiu de forma espontânea nas releituras, mostrando como os estudantes estão inteirados e são afetados por tudo que os cerca”, avalia.

Lessons de Kenton Nelson
Releitura de Lessons, pelo grupo Girassóis de Van Gogh

Trazer toda essa troca e experimentação para o universo da Internet foi uma iniciativa do estudante Marcelo da Silva Costa, que teve a ideia de criar o Instagram da Tô no Quadro, com a intenção de ampliar o número de pessoas em contato com o trabalho. “Colocávamos música para ouvirmos antes da aula começar, ele teve a ideia de criar a playlist da Tô no Quadro no Spotify. Também é do Marcelo todo layout da nossa Eletiva nas plataformas digitais em que estamos”, destaca Aurika.

Atualmente, a professora está na Escola Estadual Integral Cleinia Rosalina Souza, mas segue com o projeto em sua terceira edição para promover uma interação ainda maior – agora não só entre classes, mas entre escolas. “Pretendo chamar estudantes da escola José de Mesquita para participarem das apresentações no Cleinia como convidados, criando uma troca de experiências, que espero seja muito produtiva e especial para todos nós, pois a arte é uma forma de nos expressarmos e nos comunicarmos, o que é essencial para nossa vida social. A arte amplia a capacidade de percepção do mundo, ajuda a compreender a diversidade, e, por consequência, a respeitar as diferenças, o que considero muito importante nos dias atuais”, conclui.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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