Por Regina Beatriz Guimarães Neto*

Vivemos tempos trágicos, diretamente ligados a nós. Não estamos fora da paisagem social, mas imersos nela. Somos personagens das histórias – das histórias de vida e morte – que se imbricam umas às outras e expressam nossos sentimentos de maneira multiforme e simultânea. São sentimentos contraditórios, algumas vezes coerentes, outras, muitas outras vezes, completamente incoerentes. Entre isso e aquilo, entre pensamentos que apaziguam e outros que colidem e destroem verdades, convicções e crenças (coisa boa!), somos lançados em um mar de incertezas vitais. Nossa alma flutua nas saudades, memórias e abraços… e medos, mais medos.

Como dizem diversos escritores romancistas – e nós historiadores e historiadoras gostamos muito do que dizem – não são as grandiosas marcas criadas para produzir a identidade das regiões, dos países, das cidades e suas amplas avenidas, exposições de construções e monumentos que nos contam das experiências e dos segredos do seu dia a dia. Pelo contrário, nos relatos que adentram esse “mundo” o coração pulsa nos detalhes, nos gestos e vozes, nos modos de fazer e inventar o cotidiano dos grupos sociais que as habitam.

Da janela do apartamento em que moro contemplo mudanças e silêncios. Dela consigo ver a praia de Boa Viagem em Recife. A antes barulhenta praia – com os agradáveis jogos de futebol – é hoje tomada pela ausência de pessoas, ocupada apenas pelo murmúrio do mar; nada de se ouvir camarãooooo… peixe fritoooo, caldinho de feijãoooo, sorvetes e picolés, anúncios de bugigangas e música sertaneja! Agora há um silêncio que emite signos a serem decifrados e anuncia maus presságios!

Mesmo na paz da nossa casa, para mim e meu companheiro – nosso casulo – a incerteza me habita e a inquietude me atormenta. Meus amigos e amigas, nossos filhos e nossas filhas, irmãos e irmãs, tias queridas, pai… Estão bem?!!! Logo me vem as imagens também de pessoas desconhecidas que clamam por solidariedade diante do sofrimento. Há angústias que tentamos dispersar ao escrever, ler e conversar pelos mais diversos meios, especialmente vídeos, porque queremos ver e até sentir os rostos, o sorriso carinhoso e o compartilhamento das emoções. Em meu caso, tenho a sorte de tudo dividir com o meu companheiro de todas as horas. Um acalma o outro. Mas, a cada espirro, a cada tosse, a cada mal-estar – antes corriqueiros – há uma indagação no ar! Sempre olhamos um para o outro, numa linguagem muda: quero que você viva!

Reagimos às saídas de casa com mil perguntas que ensejam dúvidas e inseguranças.

Seguimos ouvindo histórias, desde a filha de nosso amigo que se encontra na UTI às imagens fatídicas nos tristes relatos na imprensa, com as notícias do crescente e assustador número de pessoas atingidas pela pandemia. Cada vez mais valorizamos os testemunhos de quem vivencia ou vivenciou os acontecimentos traumáticos e que nos atingem, pois, estamos ligados a uma relação de dependência mútua. Isto é crucial neste novo mundo! Por isso, os nossos testemunhos devem ser narrados e transformados em histórias para que possamos viver e compreender… Por isso escrevo e reflito. Com dor!

De outra parte, minhas análises e sentimentos se baseiam também em outras avaliações. Vários filósofos, filósofas e estudiosos de outras áreas das ciências vêm debatendo o individualismo na sociedade neoliberal, o caos da saúde, a fome por lucro dos grandes bancos e empresas financeiras, a precariedade e a vulnerabilidade dos trabalhadores – distribuídas de forma completamente desiguais – que enfrentam o desmonte das legislações trabalhistas. Resultado de lutas históricas para assegurar direitos sociais e sobretudo direitos humanos, como a filósofa Judith Butler e a historiadora Angela de Castro Gomes defendem. A pandemia era algo anunciado, especialmente em diagnósticos científicos, fruto da inexistência e/ou da ineficácia dos sistemas de saúde mundiais. Além disso, deve-se acusar as comercializações criminosas de espécies de “animais selvagens”, como na China, no Brasil e em vários lugares do mundo, e dos desmatamentos de florestas, como na Amazônia em que os cientistas já estão alertando para possíveis focos de epidemias, causados pelos desflorestamentos. Os crimes ambientais de maneira geral colocam em risco o equilíbrio biológico de várias espécies animais e vegetais; organismos como bactérias, fungos e mesmo vírus fazem parte da vivência comum – para o mal e para o bem – no planeta Terra. Conviver, coabitar, coexistir se tornam condição para a vida.

No entanto, há diferentes perspectivas, e algumas são assustadoras. Para atestar a complexidade da nossa compreensão social e filosófica, e mesmo nossa absoluta perplexidade, testemunhamos no Brasil um governo para quem a morte e a vida se equivalem. Um governo que se alimenta de crises políticas e trabalha para militarizar a esfera federal como forma de governabilidade, que envolve a tomada de decisões autoritárias se não golpistas. A todo o momento há declarações governamentais, apoiadas em perigosas algazarras e tagarelices milicianas, sobre a “economia da morte”, naturalizando os efeitos da pandemia e do número de mortos no Brasil. Qual é a maior catástrofe? A nossa angústia!

Recife, 17/05/2020

*Regina Beatriz é professora do Departamento e da Pós-graduação em História da 
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e pesquisadora do CNPq.

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