Por Edelson Santana*

Quem é da mesma geração que a minha certamente conheceu a Strauss pela programação da MTV Brasil, canal de música que tinha sinal aberto em Cuiabá até pouco tempo atrás. É preciso contar aos mais novos então: naquela época, há mais de vinte anos, a internet era discada, para poucos, e mal se tinha telefone em casa. Os canais de compartilhamento de vídeos viriam somente uma década depois, os clipes tinham como plataforma a tevê e pobre mesmo era quem não tinha ao menos um videocassete. Foi num desses dias de VJs em vez de youtubers que eu descobri a banda, pelo clipe de “A lua”, uma versão de rock pesado para uma das músicas mais emblemáticas do rasqueado cuiabano.

Era a primeira vez que eu via e ouvia Cuiabá daquela forma, e em rede nacional. Já conhecia Henrique e Claudinho, é claro, alguns anos antes disso, o elepê Cuiabá, Cuiabá rodava nos toca-discos de quase todas as casas cuiabanas. E já tinha ouvido até os primeiros acordes de um lambadão, com Os Maninhos, que comandava os fins de semana dançantes da lanchonete do Deacil, vizinha à minha casa do bairro Carumbé, onde me instalei após ter vindo definitivamente para a cidade cursar jornalismo. Naquele momento, porém, a MTV não só me fazia parar para ouvir o novo som de mais uma banda de rock local, como também trazia ainda mais forte a percepção de que a cidade tinha e expressava pela música uma identidade cultural muito particular e ao mesmo tempo universal.

Uma banda cuiabana mas de raízes livres para captar tudo o que chegava sem limites pelo ar. Foi o que senti à primeira vista, imagem que se reforçou ao ouvir o álbum de estreia, Strauss (1995). Lá estava “A lua”, música de domínio público sobrevivente ainda hoje no imaginário cuiabano, dividindo espaço com uma versão igualmente roqueira e, por isso, transgressora de “História de uma gata”, do Chico Buarque. A autoral “Nada, não, ninguém” dava voz ao niilismo típico de quando éramos tão jovens e ajudaria a levar a banda à conquista de um público mais amplo, com a vitória no festival Skol Rock de 1997 pela votação popular, o que abriria de vez a porteira mato-grossense. Shows no ginásio da UFMT, concerto com a orquestra sinfônica da universidade, Cuiabá parecia enfim, aos meus olhos, ter uma banda de mais ampla expressão.

A tradição local na trajetória da Strauss, penso eu, teria espaço privilegiado no segundo disco, Mesmo que eu tente sorrir… (1997), em que os sons tradicionais da viola de cocho, do mocho e do ganzá são incorporados à linguagem mundializante do rock’n’roll. Com produção de primeira grandeza, é o álbum cuiabano mais cosmopolita da banda, uma amálgama de regional e global. Nele, os elementos cuiabanuniversais ficam em evidência desde o projeto gráfico, capa e encarte trazem a estampa do artista plástico mato-grossense Clóvis Irigaray e outras imagens que remetem à nossa identidade cultural, e são partes constitutivas das músicas.

Um rasqueado mais fronteiriço abre o disco, “Me pega por favor”, conhecido pela gravação na viola caipira de Helena Meireles, instrumentista sul-mato-grossense então descoberta pelo mundo após premiação pela revista Guitar Player. A temática local literalmente ganha peso com a versão rock de “O joio e o trigo (Bateia)”, composição da dupla Vera e Zuleika que retrata o garimpeiro em busca do ouro à beira do rio, homem e ação estreitamente ligados à origem da capital e ao povoamento de boa parte do sertão mato-grossense. E o rasqueado cuiabano é ainda referência para “A minha morena” e “Pão seco”, com ritmo e letra próximos do cururu.

Todas essas canções de inspiração na cultura regional, mais voltada à oralidade, dividem as faixas de Mesmo que eu tente sorrir… com outras que fazem referência à literatura nacional, como “Morangos mofados”, de versos agônicos (“E se a gente não sentisse/A dor que a gente finge/Que não sente”), ou “Flor da idade”, outra de Chico Buarque, que, por sua vez, dialoga com um poema de Drummond. Já com esse álbum lançado, ao final da década, a banda teria participação na coletânea A grande noite do rasqueado cuiabano, registro ao vivo de um evento na praça cultural do CPA que reuniu Henrique e Claudinho, Roberto Lucialdo, João Eloy, Os Maninhos e outros nomes da música produzida em Mato Grosso.

“É uma banda que tem antena e raiz”, resumiu o guitarrista Ricardo Sardinha, em 2002, numa reportagem de um quadro do Jornal Hoje que mapeava o novo som do Brasil. Eu já morava em Goiânia e soube que, no ano seguinte, a Strauss lançaria ainda o álbum Pra que lado corre o rio, que, embora tenha tido uma produção própria e gravação em estúdio local, hoje soa aos meus ouvidos muito mais antena que raiz. De sonoridade antitética, alternam-se peso e leveza na música – a flor que rompe o asfalto –, e as letras questionam ou refletem um estado de coisas desde sempre atual. As questões humanas, no plano individual ou coletivo perpassam nos versos de “Alguém mais seco ainda” (“Se o rio não secou, vai ficar mais seco ainda”) ou na conhecida “Funeral de um lavrador”, versão musical para um poema de João Cabral de Melo Neto.

Anos mais tarde, assisti a uma apresentação da Macaco Bong com Gilberto Gil no festival Goiânia Noise, que incluía faixas de Artista igual pedreiro, o melhor disco nacional de 2008, segundo a revista Rolling Stone. Ainda em solo goiano, eu conheci e acompanhei o crescimento da Vanguart, que conquistava seu espaço entre as grandes bandas do rock nacional. E, a cada nova banda mato-grossense que eu ia descobrindo na terra do sertanejo, o que a distância de tempo e de espaço me levava de fato eram as lembranças da Strauss e daquele som que um dia me fez perceber a força e a simplicidade da arte cultivada por centenas de anos em Cuiabá.

Voltei a ver a banda na ativa mais de uma vez ano passado, no palco de um pub e no show de abertura da primeira edição do Rock Arena. Caminhando para os 30 anos de formação, ela levou ao público os velhos sucessos de seus primeiros discos e, com o mesmo peso, apresentou músicas autorais inéditas. Sinal de que ainda há muito por vir da Strauss, a banda mais rock’n’roll de uma cidade já tricentenária.

 

Edelson Santana é jornalista e pesquisador de literatura em língua portuguesa

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