Enquanto aguardo o novo romance de Raimundo Carrero procuro ler os anteriores. Mas não corro atrás dos exemplares. Compro quando me deparo com algum nas gôndolas dos supermercados de livros. Foi assim com “Tangolomango”, como também com “ O senhor agora vai mudar de corpo”. Recentemente adquiri outro par, e sobre eles é que discorro agora algumas impressões.

“Sombra severa”, logo no primeiro parágrafo se assoma aos meus olhos como um épico do século XXI. Logo nas primeiras linhas, lembrou-me um pouco a grandeza armorial de um Ariano Suassuna, com aquele vigor característico de uma prosa densa, na qual “No silêncio que se enfurna nas trevas do anoitecer, as recordações teciam-se, redemoinho na alma. Medonho e áspero” (2008, p. 13). E isso em apenas uma centena de páginas.

Muitas das personagens recebem nomes bíblicos, mas são desconfiguradas da referência mítica judaico-cristã consolidada por mais de dois mil anos de dominação religiosa. Desprovida dessa aura simbólica, a obra de Carrero carrega nas tintas de uma religiosidade que, se não ímpia, ao menos desprovida do pragmatismo ortodoxo que nos tem dividido. “Quando Judas se levantou, ainda não era o mesmo homem: o rosto taciturno, os olhos de cão medonho, cão que fareja presas pelos matos” (idem, p. 28).

O escritor Raimundo Carrero

Mortes, adultério, trapaças, abuso de poder. O receituário transborda de um livro a outro e as representações sociais atravessam os corpos como cláusulas pétreas de um discurso forjado na fronteira de uma ética/moral sertaneja que vibra às margens do Capibaribe. “Abel sempre fora tão cordato, o irmão. Um irmão como um irmão pode ser: sangue e alma” (idem, p. 29).

Não sabemos ao certo detalhes da morte de Abel. Aqui, o irmão se disfarçou sobre a pele de um judas e “morto na sua encenação, deitou-se. A manhã, leveza e alvura de manhã, com o que tem de ventos e ruídos, estava vindo” (idem, p. 31). A ferro e fogo a narrativa vai implantando um juízo ao leitor. “Os cavalos trotaram na despedida. Também eles, os Florêncio, não tinham pressa. Abel escutou. De alguma forma a vingança já estava feita mesmo, viera antes da desfeita” (idem, p. 36). Interessante a vingança feita antes mesmo da desfeita. Vejam como o domínio da língua forja uma linguagem vigorosa. E isso apenas com pequeno farejo morfológico simples, no entanto funcional.

Os capítulos são iniciados com cartas que parecem antecipar certos impasses enquanto sugerem acontecimentos vindouros. “Montou no cavalo como um rei de copas em cuja mão direita esgrimisse a espada no prumo do coração, vestido numa armadura cruzada de cartucheiras” (idem, p. 55).

Em “a minha alma é irmã de deus”, por sua vez, a ambientação da cidade do Recife surge como espaço refinado da linguagem das ruas. Há contrastes entre o sagrado e o profano, como em outras obras do autor, e parecem antecipadas pelo caráter sacro que a ordem do capital instituiu na contemporaneidade. “Bela, estranha e espantosa cidade do Recife – habitada por banqueiros e pedintes, bêbados e loucos, homens de pastas nas mãos, meninos e meninas prostituídas” (2009, p. 46).

Enquanto aguardo as narrativas do colégio de freiras, me habituo com a linguagem do mestre que antecedem ao que já nasce clássico. “Não adianta procurar o hábito de freira. Mas quer vesti-lo? Então imagine. Pense que está vestida de freira no céu com as onze mil virgens” (idem, p. 50). A criatividade do pernambucano parece não ter limites. “No Paraíso toda mulher é virgem” (idem, p. 97).

Mas não são apenas personagens e histórias que são revisitados. Parece que alguns vocábulos se tornam reincidentes de maneira alvissareira. “vendo a sombra, e perguntando está é minha sombra, é por causa da sombra que e usou Camila. Não por causa do corpo. Que não é nada. Por causa da sombra. Sempre por causa da sombra. A sombra inventava o corpo” (idem, p. 99).

E ainda “O domingo é um dia severo. Pode olhar pela janela: um dia cinzento e severo. Um dia severo. Sim. Um domingo sisudo. Cinza ou azul. Amarelo ou vermelho, o domingo é um dia sisudo. Um girassol severo” (idem, p. 161). “Sombra severa”, título do primeiro romance comentado aqui nesta crônica se biparte e multiplica as leituras. De Arcoverde, esse mesmo Pernambuco que nos deu Carrero (que é de Salgueiro), sopra a voz de Micheliny Verunschk. Em seu “nossa Teresa. vida e morta de uma santa suicida” lembra-nos que

As virgens que esperam os santos no paraíso vestem seda diáfana e têm pulseiras e anéis de um metal que parece ouro, mas que é muito mais resplandecente que qualquer polimento que a mão humana possa conseguir, mesmo que a mão humana comande a máquina de polimento mais perfeita que a inteligência teve a capacidade de inventar (VERUNSCHK, 2014, p. 87-8).

Recorte de capa de Tangolomango

Não filio a escrita de Carrero ao projeto armorial de Suassuna, embora vejo situações em que me parece haver similitude. “O senhor note que, enquanto no resto do Brasil, prostituta é rapariga, aqui, no Sertão, é Mulher-Dama, o que enobrece demais essa gente, fazendo com que elas pareçam Damas de copas, ouros, paus e espada!” (idem, p. 374). A riqueza de nosso país sempre foi a diversidade. Está na boca de todos. E o grande Suassuna sabia disso como poucos. Como também sabia que

seus amigos são incapazes de ver que o Exército e a Igreja são, na América Latina, os únicos partidos políticos organizados, disciplinados e verdadeiramente existentes (…) enquanto nós nos dilaceramos aqui em divisões estéreis, eles vão entrando, corrompendo, furtando e se apossando à vontade de tudo o que desejam (idem, p. 635).

Iremos às urnas no final deste ano, e é sempre bom lembrarmo-nos do pensamento daqueles que, verdadeiramente nos representam. E que assim seja como, aliás, de uma forma ou de outra, em nome de uma qualquer maioria tem sido. Novo e velho testamento continuam se enfrentando, agora mais fora do que dentro dos templos sagrados, nas ruas, na chuva, sobretudo em inúmeras casinhas de sapê.

 

REFERÊNCIAS

CARRERO, Raimundo.  Sombra Severa. 2. reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2008.

__________________. a minha alma é irmã de deus. Rio de Janeiro: Record, 2009.

SUASSUNA, Ariano. Romance d´A PEDRA DO REINO e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2016.

VERUNSCHK, Micheliny. nossa Teresa. vida e morte de uma santa suicida. São Paulo: Patuá, 2014.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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