Cinthia Kriemler, em sua dicção robusta, não tem pena do leitor. E nesse jogo dos prováveis, dos limites da interpretação, “Tudo que morde perde socorro” sinaliza um caminho que se percorre em meio a muitas incomodações. O livro começa um tom acima, com a palavra não. Palavra de escolha, de alforria, como se registra, anunciando possibilidades e a presença inconteste de algum tipo de grilhão. “Em como funciona a ficção”, James Wood, logo às primeiras páginas, no tópico “narrando” apresenta uma reflexão de W.G. Sebald em que se lê:

Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de livro. (SEBALD, apud WOODS, 2017, p. 19).

Trago a citação acima para exaltar a construção de sentido que a condução do discurso propõe. A evolução acontece sem grandes sobressaltos, ainda que se imponha um ritmo intenso de acontecimentos ao enunciado propriamente dito, “que mordem e gritam”. (KRIEMLER, 2019, p. 36). Em outra de suas obras sobre a qual já escrevi, apontei o uso da conjunção integrante “q” como distintiva e observo novamente sua utilização, mesmo que discretamente, como marca discursiva, espécie de operador argumentativo bem utilizado.

Seu processo de escritura parece trazer certo amargor à palavra, e ela sangra por dentro de cada sílaba projetada sobre o papel. A memória que assoma, que agrega ao discurso, que projeta o leitor para dentro do texto estabelece tal vínculo interior. “Mamãe, tia Cida, tia Socorro, tia Rita, tia Carminha. As cinco Marias que tanto me marcaram.”. (KRIEMLER, 2019, p. 20-21).

Lembro-me de “As Dez Marias”, de Viviane Santiago, de como registra o fato de que “os homens se casam com as santas e pensam incansavelmente nas outras”. (SANTIAGO, 2019, p. 25) e sigo na perseguição dos signos embutidos na ladainha que escorrega do discurso alheio. Que salta de Kriemler para Santiago, e desta para Penov, com suas “Aves Marias”, vindas ao mundo pela Patuá (salve Eduardo Lacerda e Pricila Gunutzmann).

A referência a Shakespeare e Maquiavel (eles não brincam de gato e rato), este materializado na figura de um gato que some e reaparece mais ao fim da narrativa, apresenta certa tendência ao trágico que vai se.  desenhando como pano de fundo. “Eu não sei até hoje quem ficou com Maquiavel” (KRIEMLER, 2019, p. 29). Apply for an online loan Pois agora eu conto: o gato esteve o tempo todo com Gabriel, mas não tenho tempo, digo, espaço, para contar quem é o cara, qual a sua relação com a narradora que tem um braço amputado, sofreu horrores nas mãos de Matheus e que se compraz das dores alheias ao longo da vida (e de seu discurso literário): pronto, falei! (digo, escrevi!).

As marcas da tragédia vão se materializando. “O teatro do absurdo segue em frente, protegido por leis que não bastam e pela cumplicidade dos que se calam”. (KRIEMLER, 2019, p. 36). E o romance vai se colocando em um diapasão que mescla diásporas individuais, maus tratos generalizados, questões de gênero e repressão sistêmica. A alusão a mulheres de fibra erigidas em forma de monumento se espaçam pelo texto e ocupam as galerias da memória fotográfica da parede. “D. Firmina é uma pedra bruta: bela e valiosa”. (KRIEMLER, 2019, p. 55).

A mesa está posta e preciso trazer um convidado de última hora para o diálogo. Umberto Eco discute a semiose hermética com reflexões que se alojam no seio do que vislumbro neste instante. Para ele,

Cada objeto, mundano e celeste, esconde um segredo iniciático. Mas, como afirmaram vários herméticos, um segredo iniciático revelado não serve para nada. Toda vez que pensamos ter descoberto um segredo, ele só será tal se remeter para outro segredo, num movimento progressivo em direção a um segredo final. (ECO, 2015, p. 25).

Quando me refiro a diásporas individuais quero dizer de caminhos percorridos por distintas motivações que, enfeixadas por uma narradora memorialista, produzem efeitos de sentido que deixam marcas profundas em quem as lê. Esta é uma história de amor pelo próximo. Fazem parte dela Fazal, Vilma e Firmina. E a narradora sabe de seus limites, onde não deve meter o nariz para evitar confusões. “Não quero. Não posso. Mas vou”. (KRIEMLER, 2019, p. 71). Ainda com as palavras de Eco reverberando no vazio em que me encontro, compreendo que

Umberto Eco

O segredo hermético deve ser um segredo vazio, porque quem pretender estar revelando qualquer segredo que seja não é um iniciado, e parou num nível superficial do conhecimento do mistério cósmico.

O pensamento hermético transforma todo o teatro do mundo em fenômeno linguístico e, concomitantemente, subtrai da linguagem todo e qualquer poder comunicativo. (ECO, 2015, p. 25).

Mas estamos falando de ficção; de fricção de uma palavra à outra, de uma série de situações de humanidade profunda, “Invariavelmente contaminados por narrativas de abusos. A constatação me faz mal. Faz tempo que me afastei de quem pede socorro”. (KRIEMLER, 2019, p. 41). A sabedoria de Leonora nos impõe o registro preciso da alteridade, pois para ela, “existem narrativas que precisam nos afetar para nos lembrar do que ainda há por ser feito”. (KRIEMLER, 2019, p. 96). E há muito no universo que se coloca a nossa frente.

Diante da luz do dia que insiste em nos abrir os olhos a cada manhã. “Hoje, só consigo pensar nos setecentos mil negros que se abraçaram e riram e choraram por causa da abolição da escravatura. Mas que abolição?”. (KRIEMLER, 2019, p. 104). Hoje, no dia em que quase batemos a casa dos 550.000 mortos pela pandemia – e nem falamos mais em sub-notificação.

De vez em quando me dá vontade de dar como ponto final do romance determinada página. Mas é só uma vontade besta de brincar de ser o autor da obra alheia. Fazia certo tempo que não sentia isso. Mas agora veio. Este romance de 159 páginas, para mim, respeitando a ideia imprecisa trazida por Umberto Eco de um segredo vazio, aplicaria, sem pudor, a título de ilustração, o ponto final ao último parágrafo da página 150.

Maquiavel pula no meu colo com o pelo arrepiado. Os gatos pressentem o horror mais do que nós. Nossa viagem vai ter que esperar mais uns dias, gato. Não posso deixar Paula Regina na mão dessa mulher, digo a ele. Um miado esganiçado e alto diz que estou certa. (KRIMELER, 2019, p. 150).

Quem de vocês, como leitores, nunca experimentaram a situação de se deparar com uma personagem de um livro e pensar que mereceria um romance só para ela? Para alguns poderia ser Fazal, para outros, Vilma, ou mesmo Firmina; eu gostaria de ver em cena com maior detalhamento o fim que a autora deu a Paula Regina. Mas é apenas um delírio de quem se derrama com a escrita de Cinthia Kriemler.

 

REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2015.

KRIEMLER, Cinthia. Tudo que morde pede socorro. São Paulo: Patuá, 2019.

SANTIAGO, Viviane Ferreira. As Dez Marias. São Paulo: Patuá, 2019.

SEBALDI, W. G. In: WOODS, James. Como funciona a ficção. São Paulo: SESI-SP, 2017.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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