Edelson Santana

Certa manhã, em Rondonópolis, encontrei minha mãe cuidando da horta com um olhar desolado. Solo bom, bem adubado, água na medida, mas as sementes plantadas, teimosamente, dessa vez não vingaram. Mão boa de quem sente a terra, foi a primeira vez que eu não a vi fazer fecundar. Vive para criar. Fez crescer quatorze filhos e ainda hoje vê com desdém o cimento para manter pelo chão do quintal galinhas, árvores, orquídeas e um grande esforço de não deixar perder a raiz.

Tão forte apego telúrico vem de família, e parte dessa história eu ouvi contar. A vontade de ter um pedaço de terra fez com que os pais dela integrassem uma caravana de quarenta baianos rumo ao Centro-Oeste, a nova promessa agrícola nacional, noventa anos atrás. Após dois meses de uma viagem a pé, chegaram a Bom Jardim de Goiás, onde se instalaram e ficaram por algum tempo.

A propriedade rural viria somente em Mato Grosso. O diamante já havia colocado Poxoréu no mapa do Brasil, mas a nova marcha para o oeste dos nossos baianos mirava mesmo a ocupação de terras devolutas da região. E assim povoavam os então espaços vazios de Alto Coité, Jarudore, São Lourenço de Fátima e Mutum para sobreviver de plantações e criação de gado.

Foi na imensidão verde da fazenda Aldeias que ela cresceu. Parou de estudar quando já sabia ler e escrever – mais que isso atrapalharia a lida no campo, onde a vida era basicamente trabalho. Acordar cedo para ordenhar as vacas, cuidar dos bichos, ajudar na roça e, no tempo certo, colher o feijão ainda molhado pelo sereno da madrugada. Em ciclos regidos pelas forças naturais, os anos passaram, vieram casamento, partos e uma nova preocupação: o estudo dos filhos.

Levava a ideia de que era na cidade que os filhos seriam educados e criados para ser gente e por isso valeria qualquer sacrifício. A cidade, nesse caso, era Rondonópolis, que começava a viver o seu milagre econômico particular. A grana pesada da pluma do algodão e dos primeiros grãos de soja fazia também brotar uma forte urbanização. Empresas nacionais, bancos e companhias de armazenamento conferiam um aspecto urbano ao agora ex-distrito de Poxoréu.

Eu nasci em Rondonópolis, reassumo aqui, portanto, o foco desta narrativa. Cresci em uma vila Birigui ainda de poucas casas, que mais parecia uma colônia de baianos, os lavradores sem sítio. A família havia levado na mudança para lá todos os seus hábitos rurais. O quintal era enorme e tinha de tudo: plantas, bichos e uma gurizada sem fim.

Final dos anos setenta, já tinha energia elétrica nos postes da Cemat, mas demorou um pouco para que todos do bairro pudessem usar. Em casa, a escuridão era afastada pela luz das lamparinas de querosene e do fogão de lenha, de onde saíam as brasas para o ferro de passar. O fogão pretejava as paredes e o telhado da cozinha, mas era aos pés dele que a gente podia ouvir histórias rurais, contadas pelos mais velhos, que sempre tinham um causo para narrar.

Assim como na fazenda, o contrato social vigente naquela vila de parentes previa, tacitamente, o comunitarismo, numa corrente de solidariedade espontânea. Dia de matar porco, um exemplo disso, evento coletivo de trabalho e partilha. A vida, aliás, seguia conduzida por ritos determinados pelo plantar e colher e as folhinhas do calendário marcavam o compasso de um tempo preenchido por festas, missas e novenas.

Se os quintais eram grandes, o cerrado do entorno representava aos nossos olhos um imenso universo a explorar. Um corguinho de água limpa, onde os pequenos engoliam piabas para aprender a nadar, dava vida a uma mata em que se pegava guaraná, cajuzinho, guariroba, mama-cadela e bosta de cachorro. Era ele, em dádivas e mistérios, a extensão de nossas casas.

Naquela ânsia primária de viver, só aos poucos fui percebendo uma vila que se transformava no ritmo da cidade. O asfalto chegou na rua da Santa Casa. Uma praça foi construída. O campinho cedeu espaço para a construção de um sobrado. Às primeiras investidas, multiplicaram-se as placas de vende-se. Parentes partiram por terras em Rondônia. Um rápido piscar do tempo encurtou a dimensão do cerrado. E eu incorporava, pela experiência, a expressão especulação imobiliária a um vocabulário ainda incipiente que só mais tarde conheceria a palavra gentrificação.

Nova mudança chegou, para outro bairro, outra casa, com água encanada, chuveiro e piso em vermelhão. Terreno menor, parte em cimento e um pedaço em terra maltratada pela ausência de quem dela cuidasse. Foi no espaço de mais esse recuo que minha mãe fez outra vez o milagre renovar. O quintal rapidamente ganharia aspecto diferente, com o verde das folhas e o colorido de frutos e flores, nascidos de mãos hábeis que aprenderam a fazer brotar.

É nessa casa que hoje ela vê Rondonópolis chegar aos 66 anos de emancipação. Os jornais do dia estampam notícias em comemoração que trazem um orgulho geral medido em números, rankings e siglas de PIB e IDH. O município consolidou a confortável condição construída ao longo de décadas por um firme enlace com o agronegócio. É uma cidade dinâmica, moderna e aberta aos que buscam a realização de sonhos. Tudo isso é muito bom, eu sei. Mas, quando eu passo por lá, a imagem guardada em minha memória daquele olhar desolado da minha mãe diante de um canteiro vazio sempre me faz recordar o tempo de campos ainda não desbravados e que mesmo assim proporcionavam uma fartura imensa, de forma igual e para todos.

 

Edelson Santana é rondonopolitano e jornalista em Cuiabá

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