Nina Ricci

Meu amigo querido, Cid

Que saudades de você.

Há algumas semanas lembrei que hoje seria seu aniversário de morte (estranha essa expressão né..?) e fiquei quieta um tempo, para lembrar um pouquinho do nosso encontro e chorar.

Me lembro daquela tarde de setembro em que senti uma súbita falta das nossas conversas e resolvi te escrever (já fazia tanto que não nos falávamos…) e, sem resposta, por qualquer intuição abri a página do seu facebook onde encontrei a frase assustadora: “em memória de Cid Nader”. Fiquei incrédula repetindo para mim mesma – não, não, não, não pode ser! – mas era.

Ah meu amigo, como eu queria poder ligar hoje pra você e combinar uma andança qualquer nas ruas cinzentas dessa tua São Paulo. Mas como nossos encontros eram quase sempre assim, pelas palavras, faço deste texto nosso café (com o bolo de laranja que você adorava se gabar e eu nunca comi). Eu também tenho risíveis pretensões de dar conselhos (ou pitacos, como você diria) para pessoas que nutro afeto gratuitamente, sem nem conhecer. Acho que a gente deixa a vida atropelar demais e cultiva pouco o espaço do luto, por isso deixo aqui minha receita para quem tem saudades.

Reserve um tempo para chorar

Deixe-se de molho por algumas horas, se possível. Pelo menos 30 minutos é necessário para que a massa das memórias cresça e dobre de tamanho.

Aqueça o forno, aqueça toda a cozinha, se aqueça.

Lave-se em água corrente para tirar o excesso de defesas

Lembrar não vai azedar sua receita, pelo contrário vai umedecê-la e permitir que novos sabores aflorem.

Vá misturando os ingredientes suavemente, neste momento fica à gosto as quantidades de sal e açúcar.

Se tiver raiva, pode botar! Revolta pelas ausências, pelos e-mails atrasados, pelo tempo que voou e poderia ter sido recheado de muitos outros encontros. Depois deixe que ela se integre à massa, é importante que ela forme bolhas de ar que ajudam a sustentar a estrutura.

Se tiver umas risadas também são bem-vindas, lembre-se de que selecionar ingredientes de qualidade é fundamental. Aquele dia que saímos pra tomar sorvete de goiaba na praça Alencastro, a surpresa inacreditável de receber pelo correio um isopor cheio de pães de mel feitos especialmente pra mim, os comentários irônicos, a sensação daquele abraço forte e desajeitado ao mesmo tempo, vontade de ficar mais, saber mais, falar mais.

Não ponha culpa, jamais! 

Culpa estraga qualquer receita, é importante não deixar dramático demais ao ponto de causar contorções. Este preparo é para deixar a dor da tarde um pouco mais confortável.

Leia algumas palavras trocadas em voz alta, se quiser. Ou coloque uma música compartilhada, este momento não agrega nada a receita é apenas superstição – tipo fechar a janela para que o vento não afete o resultado. 

Mas eu abriria a cortina pelo menos, daria uma olhada lá fora, deixaria as cores da cidade entrarem no peito – costuma ajudar, mesmo que venha com certa melancolia.

Quando começar a sentir o cheiro do amor saindo do fogão, desfrute – vai preencher todos os espaços da casa e este é talvez o momento mais precioso de toda essa experiência. 

Finalmente, quando estiver pronto, retire do forno com bastante atenção. 

Respire por um tempo, não tenha pressa em finalizar o ritual. 

Olhe pra ele, respire novamente como quem diz: que saudade! 

Pode ser que uma lágrima pule junto de um sorriso apertado e talvez uma vontade avassaladora de chorar encha o peito. Chore, se quiser. Ou ria. 

Corte seu pedaço com carinho, ofereça a si, a quem quiser, e às lembranças. 

Agradeça sinceramente pelo reencontro, e delicie-se da presença.

 

P.s: No ano passado, mais ou menos nesta mesma época, fiz pela primeira vez a receita de pão de mel que você deixou. Me emocionei. Muito. Você ficaria orgulhoso, ou debocharia da minha ousadia quase irritante de trocar o mel por melado de cana. Acho que você se poupou, Cid, da inacreditável experiência que estamos vivendo nesse tempo hoje. Mas ainda assim, eu amaria te ouvir reclamar da política, da correria, do teatro online ou qualquer coisa. Um abraço, amigo.

P.s.2: Para quem possa não saber, Cid Nader foi um importante jornalista e crítico de cinema brasileiro, apaixonado pelos curta-metragens, por culinária, por conversas e mais conversas, e por sua cachorrinha, Pri. Sua participação significativa nos Festivais de Cinema do Brasil, especialmente no Festival de Cinema de Cuiabá, o Cinemato (onde nos conhecemos), será sempre celebrada por quem teve o prazer da convivência. Nossas saudades sinceras, Cid.

 

Nina Ricci é artista cuiabana, escreve afetos com poesia, dança, teatro, vídeo, educação e o que mais o corpo chamar. Licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, busca encontros no movimento entre a Cuiabrasa, a Pauliceia e agora também João Pessoa.

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