Por Santiago Santos*

Os sinais estão aí. Vivos, ferventes, múltiplos. As estatísticas brasileiras não mentem. Negros são mais pobres e morrem mais. A taxa de feminicídio é alta. Somos o país que mais mata trans. Ainda temos escravos ou trabalhadores em regime análogo à escravidão. A demarcação de terras indígenas das etnias que sobreviveram ao massacre colonizatório segue até hoje em disputas judiciais. Cinco indivíduos possuem a mesma riqueza que metade da população brasileiraOs mais ricos pagam menos impostos percentuais que os mais pobres. A palavra “golpe” separa a população em polaridades cada vez mais exaltadas, e a descrença política abre caminho pro discurso radical de pacificação a qualquer custo, de nacionalismo, de valores morais que teríamos, em algum momento, perdido. Já vimos esse filme antes.

Em março de 2018, duas notícias fazem um recorte amplo da fragmentação em curso. A primeira vem de um Rio de Janeiro falido após gestões corruptas e uma desatualizada guerra às drogas (irônico que Nem da Rocinha seja tão assertivo na recente entrevista ao El País, explicando os passos práticos para acabar com o tráfico que o colocou atrás das grades). A intervenção militar desenhada pelo governo federal repete a velha tática da repressão nas favelas infestadas pelo tráfico, onde moradores inocentes, em sua maioria negros e pobres, são dano colateral constante. Uma das vozes contra os abusos praticados, a da vereadora Marielle Franco, relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio para acompanhar a intervenção militar, que criticava, foi silenciada com quatro tiros na cabeça quando voltava pra casa na noite do dia 14. Anderson Pedro Gomes, motorista do carro alvejado, também morreu.

Marielle era um símbolo vitorioso de uma fatia da população desacostumada à vitória: negra, feminista, lésbica, ativista dos direitos humanos e favelada, foi a 5ª vereadora mais votada no Rio na última eleição e não tinha papas na língua. Protestou, apontou dedos, denunciou crimes, incomodou, fazendo justamente o que foi eleita para fazer, protegendo sua comunidade. Não é surpresa, dado o seu histórico e as condições de sua morte, que ela tenha se tornado mártir da insatisfação não só com a truculência da intervenção, apontada por militares como laboratório para o país, mas de um sistema corrupto e falho que insiste em atacar apenas os efeitos na ponta da equação, e não os erros estruturais que permitem sua existência.

Já no dia 5, os indígenas Terena realizaram uma manifestação em resposta à decisão do STJ sobre a disputa de 13 mil hectares de terra em Mato Grosso do Sul, que a etnia reivindica como parte da Terra Indígena Buriti, entre os municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti. O líder Otoniel Gabriel é porta-voz dos Terena, que apresentaram recursos à União para expansão de sua TI, atualmente com 2 mil hectares, para 15 mil. A expansão, que legalmente ocorreria com a compra dos terrenos dos proprietários privados pela União (o valor avaliado tem gerado desentendimentos), foi negada em duas instâncias e segue agora para decisão final do STF. A expansão tem com base três estudos antropológicos que comprovam a existência e subsistência dos Terena na região antes que, ao longo do século passado, 31 fazendas se instalassem ali. A luta dos indígenas por sua terra de origem deu margem a um conflito com a Polícia Federal que levou à morte do irmão de Otoniel, Oziel Gabriel, em 2013. Oziel transformou-se também num mártir, que impulsiona seu povo à luta.

Resumo do recorte: mártires não param de surgir. Marielle e Oziel não são os únicos. Injustiças históricas seguem se perpetuando, as riquezas seguem nas mãos de castas que detêm o poder econômico, político ou ambos, e a população que paga o pato é sempre a mais desprotegida, que não vive de dividendos, que não bebe de heranças e pensões e auxílios de toda sorte, que não tem acesso às melhores escolas e melhores hospitais, que não pode pagar pra se proteger atrás de muros altos, cerca elétrica e segurança privada.

Vivemos uma espécie de fragmentação, instalada não só no Brasil como em outros países, alimentada por uma hierarquia do conhecimento, resultado dos conflitos que desenharam as nações, das colonizações e das práticas adversas do capitalismo. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos aponta que, no mundo ocidental, ao longo do tempo se estabeleceu uma predominância dos conhecimentos inaugurados ou validados no hemisfério norte, mais avançado tecnologicamente e detentor de maior riqueza e poder, com relação ao hemisfério sul. O conceito das Epistemologias do Sul, que Boaventura propõe, é justamente o de descolonizar a academia e a sociedade, rompendo com essa hierarquia, valorizando não só o conhecimento do sul frente ao do norte, mas o popular frente ao acadêmico, o de parcelas da população apagadas representativamente frente ao de parcelas em constante evidência, entendendo também o contexto em que esse conhecimento é gerado e perpetuado.

Em termos práticos, é dizer que tanto o cientista em seu laboratório quanto a benzedeira em seu jardim, herdeira de gerações de uma sabedoria natural que a tornaram especialista em curar e prevenir doenças manipulando folhas e raízes, têm conhecimentos de igual valor sob diferentes perspectivas. É óbvio que por um lado as indústrias estabelecidas, que protegem sua fonte de lucro, e por outro a propaganda e as narrativas já cristalizadas, exercem redes de contenção, de suspeita, de manutenção. Coisa de ignorante, selvagem, gente incivilizada. O balé é superior a uma dança ritual indígena. A música pop lasciva cantada em inglês, produzida em grandes estúdios e difundida por grandes corporações, é melhor que o funk igualmente lascivo dos bailes funk cariocas. Os quadros do Louvre são de superioridade infinita aos quadros de qualquer exposição em um museu brasileiro. Os católicos, ungidos pelo Jesus branco de olhos azuis, são mais merecedores de crédito que qualquer praticante do candomblé. O morador do condomínio fechado é mais importante que o morador da favela.

À proposição de equilíbrio, de valorização desses conhecimentos cotidianamente ignorados que ainda assim formam o patrimônio material e imaterial dos povos, Boaventura deu o nome de Ecologia de Saberes. E foi com base na Ecologia de Saberes que o Sesc Arsenal, em Cuiabá (MT), realizou, entre 22 e 24 de fevereiro deste ano, a segunda edição do Seminário de políticas culturais: Os saberes de [r]existências e outras práticas do conhecimento. No âmbito de quebrar expectativas e produzir conteúdo sensível durante esses dias de troca, fui convidado pelo Jan Moura, coordenador de cultura do Sesc regional, curador e host do evento, para produzir experimentos literários com base nas pessoas e nos discursos com que tomaria contato. Também foram chamados o Ahmad Jarrah e a Juliana Segóvia para experimentar, respectivamente, em fotografia e cinema. Todo esse conteúdo foi compilado em um blog especialmente criado pro evento, cujos links diretos tomei a liberdade de polvilhar pelo texto.

[Confira AQUI um vídeo produzido por Juliana Segóvia com destaques do seminário]

A grande homenageada foi Dona Francisca, uma benzedeira e raizeira quilombola de Chapada dos Guimarães ainda em atividade, com 104 anos. Ela não esteve presente na abertura mas foi representada pelo seu conterrâneo Henrique Santian com o documentário “Fé de Francisca”, apresentado na íntegra. Em cerca de 10 minutos, acompanhamos Dona Francisca em sua rotina e em declarações acerca do trabalho que desempenha junto à comunidade desde os nove anos.

No mesmo papo em que o documentário foi apresentado, estavam presentes três outras pessoas que trabalham com a cura natural: Dona Paschoalina, que atende a comunidade em sua casa no bairro Alvorada e possui um quintal enorme de onde colhe as folhas que usa no tratamento bioenergético de seus pacientes; Domingas Apatso Rikbaktatsa, da etnia Rikbaktsa, em Brasnorte (MT), que produz remédios naturais com a flora da região e disse raramente precisar levar alguém da aldeia ao hospital; e Eric Timóteo Iwyrâkâ Kmaikiawa, aprendiz de xamanismo/pajelança da etnia Bakairi, de Paranatinga (MT), que falou não só dos remédios naturais mas também do contato com o mundo invisível e do treinamento severo a que um xamã bakairi é submetido.

No segundo dia, conversaram a filósofa e ativista negra e feminista Djamila Ribeiro, as cantoras travestis da banda As Bahias e a Cozinha Mineira Raquel Virgínia e Assucena Assucena, a dançarina e pesquisadora do funk carioca Taísa Machado e o imigrante haitiano Jacques Duckson, em Cuiabá há cinco anos. Falaram do lugar de fala da mulher e da pessoa negra, dos embates e do preconceito cotidiano na vida de uma trans, das lutas legais e adaptação cultural dos imigrantes.

No terceiro dia, o papo contou com Leonardo Castilho, mediador cultural surdo do MAM em Sampa, o cineasta xavante Divino Tserewahú, da TI Sangradouro em Primavera do Leste (MT), a acadêmica Naine Terena e a professora Alessandra Dias Alonso, ambas da etnia Terena (a mesma abordada no início desse texto), de Cuiabá e da TI Limão Verde em Aquidauana (MS), respectivamente, e a pesquisadora e curadora cultural Rita Aquino, de Salvador (BA). Falaram da cultura surda e das dificuldades de acessibilidade, ainda muito presentes hoje, da memória e das dificuldades de manter a tradição das etnias indígenas numa sociedade que não as valoriza, e da necessidade de buscar vozes e espaços fora do convencional para construir programações culturais inclusivas.

As três mesas contaram com tradução em libras e foram, como se pode observar, marcadas pelo discurso da vivência de cada um como protagonista de sua própria história, sem mediações, atalhos e simplificações (no meu caso de ouvinte homem, branco, cis, hétero e de classe média, pude me resignar ao silêncio de um sem fim de privilégios e aprender de perto as dificuldades que não sinto na pele). O público participou ativamente, bombardeando os presentes com perguntas que alongaram as discussões por mais de duas horas cada.

Além das mesas, várias vivências e oficinas preencheram os dias. Leonardo Castilho falou em detalhes de sua história, do seu trabalho no museu e da atuação do coletivo Corpo Sinalizante, que difunde libras e a cultura surda, propondo, no final, que os ouvintes criassem gestos para expressar palavras e sentimentos. Taísa Machado, numa oficina de dança, voltou às raízes do rebolado falando dos costumes de uma etnia da Tanzânia que o pratica há milhares de anos de forma ritualística, e situou a evolução desse movimento na dança exigente do funk, desmistificando a ideia de que as funkeiras não precisam estudar — estudam e praticam, e muito! Dona Paschoalina falou do poder curativo da terra e dos perigos de alimentos e hábitos modernos que não fazem bem algum à saúde mas seguimos consumindo e repetindo, engordando uma indústria lucrativa.

Naine Terena trouxe da TI Limão Verde três parentes para ensinar ao grupo como os Terena vivem, comem, pensam e celebram. Foram várias dinâmicas e conversas acerca das dificuldades atuais, incluindo uma sensibilização dos embates pela terra através de um mosaico sonoro, que emocionou muitos participantes. O mestre Véto Salgado, do Instituto de Capoeira Aruandê, que atua em vários centros comunitários de Cuiabá, trouxe um pouco da história dessa dança tradicional e formou uma grande roda de capoeira. Rita Aquino partilhou sua expertise com curadoria de eventos para sensibilizar os produtores culturais acerca das necessidades de dialogar com a comunidade e fazer com que os projetos ecoem e deem frutos mesmo depois de sua fase inicial.

O espaço físico do Sesc também foi adaptado durante os dias de evento. A entrada foi reestruturada pela artista Ruth Albernaz para se tornar a sala da casa “de uma pessoa que lida diariamente com essas forças mágicas da natureza”: folhas e vasos e potes espalhados pelas paredes e penduradas numa engenhoca semelhante a uma árvore, bancos de madeira e palha trançada, obras de artesanato e arte criando um ambiente sereno. Além disso, ela espalhou pratos de cerâmica com pinturas e desenhos do cerrado pelo jardim, próximos das fotos de Dona Francisca, num vislumbre da exposição do fotógrafo e cineasta Henrique Santian. As três bonecas híbridas da performance Círculo de Mulheres trouxeram um pouco de sua sabedoria ancestral para abençoar a terra e o grupo de maracatu Buriti Nagô percorreu o jardim, batucando e cantando suas loas.

O encerramento do evento se deu com uma sequência de shows, seguindo a mesma temática. O grupo de cururu Tradição Cuiabana do Coxipó e o grupo de siriri Flor de Atalaia trouxeram a música e a dança tradicionais da região. Na sequência o trio de rappers haitianos radicados em Cuiabá Star Magic 509 subiu ao palco, cantando em crioulo, francês, português, espanhol e inglês. Kunumi MC, da aldeia Krukutu, em Parelheiros (SP), emendou um hip-hop em português e guarani que exigia a demarcação das terras e enaltecia os valores dos povos indígenas. Karola Nunes, revelação da cena da música independente mato-grossense, apresentou seu repertório autoral.

Quem fechou a noite foram as cantoras Assucena Assucena e Raquel Virgínia, que junto com o guitarrista Rafael Acerbi fizeram um pocket show da As Bahias e a Cozinha Mineira no combo guitarra + voz(es), juntando um público animado no jardim diante de uma bandeira transgênero aos pés do palco. Algumas das já clássicas músicas desses novos expoentes da MPB, como Apologia Às Virgens Mães e Jaqueta Amarela, foram entremeadas com covers de Caetano Veloso, Alcione e Rita Lee.

Há de se destacar a importância de um evento como esse em Mato Grosso, polo agrícola e agropecuário que é vice-campeão nacional do desmatamento ilegal e cuja capital ocupa o 39º lugar no ranking de cidades mais violentas do mundo. Num momento político em que o termo direitos humanos, que congrega uma série de lutas pela equanimidade e liberdade de toda uma sociedade se torna mero sinônimo de ~protetor de presidiário e ~defensor de favelado, espaços como esse, que dão protagonismo a quem não costuma ser ouvido, se tornam cada vez mais essenciais. Não como fim em si; mas como ponto de formação e difusão e um vislumbre do que uma sociedade mais inclusiva e justa — para todos os gêneros, etnias, cores de pele e deficiências — pode se tornar.

Abrir caminho, alcançar de alguma forma os que torcem o nariz pro diferente e pro excluído, não é fácil. O status quo se perpetua pela conivência e pelo silêncio. Mas é cada vez mais audível a voz de quem não costumava ser ouvido. Testemunhamos avanços nas últimas décadas, seja no movimento feminista, no movimento negro, no movimento da medicina natural e integrativa, no movimento indígena, no movimento surdo, no movimento da cultura popular. Mas basta uma breve passagem por um evento como esse pra notar que as lutas ainda são muitas, cotidianas.

Resta saber até que ponto o modelo político-social-econômico pode vigorar do jeito que está desenhado. Vemos as rachaduras da fragmentação aquecidas. As chances de que tudo o que representa um seminário como esse seja esmagado sob a sola das botinas, de novo, não são nem um pouco remotas. Até que ponto serão necessários mártires pra incentivar ação, pra reavivar o lembrete de que essas lutas nunca esmoreceram? Quantas Marielles e Oziels ainda serão necessários, fica a pergunta já calejada.

*Fotos de Ahmad Jarrah, gentilmente cedidas pelo Sesc Arsenal em Cuiabá.

*Santiago Santos é escritor, tereréficionado, tradutor e jornalista. Mora em Cuiabá
 e publica drops literários toda semana no www.flashfiction.com.br. Seu primeiro 
livro, Na Eternidade Sempre é Domingo, uma aventura pé na estrada que mergulha na 
história e mitologia dos incas, foi lançado em 2016. contato@flashfiction.com.br

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