O processo de escrita, por si só, é criativo. Ou não. Em que medida a criatividade dá o tom do construto? A busca pela novidade, pela maneira de se distanciar da tradição e do conservadorismo nas letras têm se popularizado em todo o território nacional. Nunca se viu na história deste país tantos livros com nomes engraçados, diferentes, que levam o leitor a percorrer caminhos tortuosos de significados abstratos, surpreendentes. Os limites da imaginação são infinitos e o leitor sabe disso tanto quanto o escriba.

Escritores especializam-se na construção de oficinas literárias, disputando espaço com os críticos, enraizando na academia seu modus operandi. Muitos deles mais propensos ao processo ensino/aprendizagem do que a prática ficcional, diga-se de passagem. Mas há alguns que, sabedores dos caminhos para se chegar a algum lugar (seja ele qual for), tornam-se especialistas na arte de libertar o artista preso dentro de nós. Os nós. Luis Antonio de Assis Brasil, Raimundo Carrero e João Silvério Trevisan, por exemplo, trilham esse caminho há bastante tempo, são verdadeiros decanos no assunto. Mas há muita gente boa colhendo frutos desse trabalho. Marcelino Freire é um deles.

Li três de seus livros em quatro dias. O premiado romance “Nossos Ossos”, “Amar é crime” e “Rasif”. Comecei pela narrativa mais longa. Todos os capítulos intitulados com artigos definidos no plural, ora “os”; ora “as”, este em absoluta maioria na segunda parte. O super-herói sertanejo voa da cidade de Sertânia, Pernambuco, para a cosmopolita São Paulo. Talvez o autor seja o alter ego do protagonista; ou construído à sua imagem e semelhança.

Se um dia tivesse imaginado essa história, diriam que não é verdade, toda peça de teatro, é bom que se fale, tem de prezar por uma coerência interna, uma obediência a regras específicas, respeitar, sem vacilar, a verossimilhança (FREIRE, 2013, p. 51).

As aventuras são entremeadas por fabulações diversas. O mundo além-palco neste reino imaginário povoa as páginas em branco que vão recebendo a mancha da tinta, impregnando a “Capa de couro bovino, espada de fêmur, saiote de cóccix e uma máscara natural, a minha cara borrada de carvão…” (idem, p. 26).  Cai o pano e uma pós-epígrafe entorna o caldo da mistura: “Nossos ossos/esperam os vossos” (idem, p. 127).

“Amar é crime” é uma coletânea de dezoito contos. Em texto de apresentação Ivan Marques chama a atenção para alguns dos recursos utilizados na prosa de Marcelino, que dão um tom distintivo ao conjunto da obra. No que diz respeito ao uso da rima em textos de prosa, o crítico destaca que “… trata-se de um recurso que visa não propriamente à poesia, mas à construção da oralidade, uma das fontes inesgotáveis da literatura brasileira, como temos visto em belas amostras desde o Modernismo” (Marques, 2015, p. 15).

Em “Vestido longo” lembro-me de Nelson Rodrigues ao me deparar com “A miséria no Brasil, puta que o pariu, é pornográfica. De nascença. Todo mundo nu” (Freire, 2015, p. 25). Mas ao mesmo tempo em que estamos diante de um universo ficcional, também encontramos referências para compreender a obra como metalinguística, como extensão do universo da escrita criativa do qual Marcelino é tributário e regente, permanente escola de literatura. De sua batuta surgem inúmeros escritores que coabitam seu universo criativo. Gisele Mirabai, Aline Bei e um sem número de expoentes literários reforçam esta assertiva.

A verdade é esta. Essa imagem me pertence faz tempo. Escrever é organizar os sentimentos perdidos. Já creio que posso contar.

– Vamos casar?

– O quê?

– Eu e você, feito homem e mulher.

– Na igreja?

– É pecado.

– Deus não precisa saber.

(Idem, p. 76).

O fragmento acima é do conto “União Civil”, emblemática narrativa que também apresenta dicas para a escrita em prosa, de onde extraio também o que se segue:

– Um conto não nasce na hora em que a gente escreve, na hora em que a gente está escrevendo. Não nasce quando a gente acaba o conto, põe o ponto final. A impressão que eu tenho é que um conto nasce em algum ponto da vida da gente. Ele fica lá, congelado, esperando que algo o acorde, algo o provoque, entende? (Idem, p. 86-7).

O processo de escrita, de qualquer escrita, é como um mar e mar em rebentação: onda atrás de cada onda o escriba escorrega sua prancha pela superfície salgada daquele corpo. As imagens nostálgicas de um Recife habitado transpassam as páginas de seu “Rasif”, em que pergunta: “Em que mundo vão crescer as nossas crianças?” (Freire, 2008, p. 38). E algumas páginas mais a frente me parece clara a resposta, em um tom mais conclusivo:

Toda criança quer um revólver.

Toda criança quer um revólver para brincar. Matar os amigos e correr. Matar os índios e os ETs. Matar gente ruim (Idem, p. 41).

As ilustrações de Manu Maltez são um caso a parte. A preciosidade das insinuações captadas do texto transformam-se em sombras que parecem proteger os pensamentos obscuros por dentro de um traço que provoca vertigem. E mesmo as criações mais prosaicas, dentro do universo chauvinista que observo vizinho ao texto, trazem um tom de maresia onde o mar arrebenta, a praia. E o chá servido por entre as sombras me provoca leve riso quando me pega surpreso entre os convivas:

Fica chamando pelo Machado. O outro pelos anjos do Augusto. Lembra? Credo! Sei não. Desta semana não ele não passa. Não passa. Uma pena! Lamentável! Vai deixar uma grande obra. O quê? Eu disse que ele vai deixar uma grande obra. É. No meio do caminho tinha uma minhoca. E agora? Hã? E agora, o que a gente vai fazer? Comer. Hum, hum. E beber. O que tem de gente querendo entrar. É criticam, criticam. Mas querem participar. Hã? Deste nosso chá. De quê? De rosas. Chá de quê? De rosas. Todo mundo já está de olho na cadeira dele. Na cadeira dele. O quê? Eu disse cadeira de rodas (idem, p. 83).

 

 

REFERÊNCIAS

FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.

Nossos Ossos. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.

Amar é crime. Rio de Janeiro: Record, 2015.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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