Por Demétrio Panarotto*

Acordou com o despertador tocando.
O despertador tocava no mesmo horário há aproximadamente dezoito anos.
5:50.
Todas as manhãs, ele se levantava e, depois de se espreguiçar e fazer cara de poucos amigos, ficava parado em frente ao espelho do banheiro por alguns minutos, por aí, sem mover uma parte sequer do corpo.
Do nada, dava um tapa forte na bochecha.
E na outra.
Outros tantos tapas se sucediam.
Depois, abria a torneira e, com as duas mãos, jogava água na cabeça, que tinha um cabelo rente, e a deixava escorrer, pingando na pia.
No final, sacudia o rosto e dava um grito.
Brrr booom!
Esse era o ritual com o qual iniciava o dia. Pra ele, o dia era como um zunido no ouvido direito, principalmente no direito, que vinha do cantar dos passarinhos.
Trocar de roupa e escovar os dentes, entretanto, eram coisas que fazia com toda a agilidade e em poucos minutos.
Ia até a cozinha e, enquanto a água fervia, acendia um cigarro.
Depois do café pronto, uma tinta com a borra (pra algumas tarefas não tinha a mínima paciência), sentava-se na varanda da casa e, absorto, deliciava-se com o café e com o que restava do cigarro.
Naquele dia, sem entender o motivo, acendeu um segundo cigarro e, depois, um terceiro, um quarto, acabou com a carteira, vestiu-se e foi até a mercearia mais próxima comprar outro maço. Aproveitou e trouxe dois.
Foi e voltou num piscar de olhos.
Preparou outro café.
Agora numa xícara ainda maior.
Sentou-se novamente na varanda.
Ficou observando o movimento do dia de semana na rua em que morava; nunca havia feito isso antes.
Dezoito anos morando na mesma casa e não conhecia o cotidiano daquele lugar.
Da varanda, observava as pessoas que passavam na rua apressadas.
Da rua, os outros também o viam e a impressão dos que passavam era de surpresa, e até meio moralista, ao vê-lo sentado e fumando despreocupadamente àquela hora da manhã.
Um vizinho o cumprimentou e ele respondeu com um aceno lento e reticente com a mão que segurava o cigarro, brincando com a fumaça, sem dizer uma palavra sequer.
A vizinha que foi e voltou algumas vezes, uma senhorinha simpática com um ramo de marcela na mão, parou para conversar a respeito do pé de chuchu que estava carregado e que se debruçava no muro entre a casa do fumante e a calçada da frente.
Ele escutou a vizinha tagarelar e não disse uma palavra sequer.
A vizinha emendou a conversa do pé de chuchu em outra, a respeito de outros vizinhos, contou sobre a filha, sobre o neto, sobre as dores nas costas, as dores nas pernas, certo mal estar que insistia em não passar em dias como aquele.
Ele apenas acenou quando ela, depois de se repetir diversas vezes, deu a entender que estava se retirando.
A senhorinha andou um pouco, e retornou:
— Já que o senhor não ofereceu e como estou com vontade de fazer chuchu pro almoço, será que eu poderia levar um ou dois?
Ele estava com a unha do dedo médio entre os dentes e, depois de olhar a senhorinha com certa insistência e sem mover um músculo sequer da face, fez um sinal de positivo. Bateu a cinza do cigarro e conferiu por conferir, ao lado da cadeira, o monte que havia se formado com os restos dos cigarros.
A senhorinha teve alguma dificuldade para apanhar os chuchus, talvez porque escolhera os mais graúdos.
Ele a acompanhou com os olhos, nada mais.
As horas do dia já o haviam atropelado e ele não as queria mais do jeito que eram ontem.
As queria diferentes.
Não sabia como.
Ao mesmo tempo, pensava que ninguém passaria vinte anos da vida com uma faca na mão destrinchando aves de vários tipos e tamanhos, 10 horas por dia, sem que fosse acometido por algum tipo de problema mental.
A mente borrou.
A vizinha era um peru gordo.
Enorme
Viu o peru grugulejar mais que uma vez.
Destrinchou-o com o olhos.
Primeiro, as coxas.
As sobrecoxas.
As asas.
O peito.
Colocou os pedaços sobre o muro.
Afiou a faca.
Deu mais uma tragada no cigarro e depois passou a separar os miúdos.
Tem quem gosta de coração no espeto, pensou, enquanto segurava o coração da vizinha na mão, ainda quente, pulsando, escorrendo sangue pra todo o lado.
Lembrou-se do tempero usado em uma das linhas de produtos da empresa em que trabalhava: vinho branco, alecrim, sal, pimenta, louro, alho e cebola. Deveria ficar bom.
Nunca havia pensado em assar o coração da vizinha. Então, ela acenou com a mão e disse:
— Vou fazer uma galinha ensopada com batatas e arroz pra acompanhar a salada de chuchu, depois eu trago um pouquinho pro senhor.
Bateu uma angústia.
Daquelas que te pegam no colo e te jogam no chão sem dar chance alguma do cabra se defender.
Algo lhe atormentou os miolos e os miúdos.
Desfez o esquartejamento rapidamente.
Pela primeira vez, sorriu e agradeceu com a cabeça.
Mesmo assim, viu a vizinha se distanciar grugulejando.
A imagem parecia agora um pesadelo.
Entrou pra fazer mais um café.
Acendeu mais um cigarro.
Enquanto a água fervia, distraiu-se com o cutelo da cozinha. Um presente de amigo secreto de um fim de ano qualquer.
Conferiu o fio.
Afiou-o.
Conferiu de novo.
Agora, um pouco mais paciente ele aguarda, com um cigarro no canto da boca, o peru chegar para o almoço.

 

Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura e professor universitário. Publicou, dentre outros, Ares- Condicionados [Nave, 2015], O assassinato seguido de La bodeguita [Butecanis Editora Cabocla, 2014]; “15’39”” [Editora da Casa, Alpendre 2010], Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008], mais alguns discos e alguns filmes. Vive em Florianópolis-SC.”

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here