As palavras que contam a história não são meras palavras inscritas no papel. As palavras que contam a História inscrevem com sangue tudo o que passou. As palavras que deveriam habitar o passado, voltam a acontecer em uma eterna repetição. O ciclo não se fecha, início e fim misturam-se em uma dança que nunca termina. Leio Isabel Allende enquanto espero o meu almoço. Uma mulher se aproxima e pergunta do livro Longa pétala de mar. Inspirado em personagens reais, a escritora chilena conta a história de como o poeta Pablo Neruda organizou um navio, Winnipeg, para trazer os refugiados da Guerra Civil Espanhola para a América do Sul.

O sonho de um país que é para todos destruído pela ganância humana. A ditadura que se impõe e tortura pessoas, separa famílias, censura qualquer possibilidade de grito, de resistência. A opressão que se abate na Espanha governada pela mão de ferro de Franco. A ameaça comunista que assombra o mundo desde que o mundo é mundo. O fascismo e o nazismo que surgem para aniquilar a humanidade. Os campos de concentração, que são campos de extermínio, anunciam o que virá após uma guerra que durou 988 dias. A Europa que se convulsiona com o avanço das tropas nazistas comandadas por Hitler.

As guerras que se desencadeiam sob os mesmos pretextos.

A escritora e jornalista Isabel Allende – Foto Casa de América

Narrando o período de 1936 a 1994, Isabel Allende percorre aquilo que rodeou a sua infância, ela mesma exilada, uma criança que escuta a história de como os espanhóis cruzaram os mares e aportaram em um Chile de esperança, recebidos com braços abertos e abraços da multidão acolhedora. Essa memória que a acompanha, após intensa pesquisa, se transforma em palavras, quase como se a narrativa tivesse sido ditada, sussurrada por aqueles que ficaram pelo caminho. Um livro que existe para lembrar que o que foi continua a ser.

É nesse mesmo Chile de esperança que se elege o primeiro presidente socialista da América Latina, Salvador Allende. Incansável, lutando para garantir dignidade ao povo explorado, aos trabalhadores empobrecidos pela elite sedenta por poder e dinheiro. Esse homem que encarna os sonhos daqueles, como Pablo Neruda, que buscavam distribuir riquezas e oportunidades, é assassinado pela ditadura que derruba a democracia com o peso das armas. O golpe de Estado de 1973 instaura o regime militar até 1990.

Não havia retorno. Os ministros foram encarcerados; o Congresso, declarado em recesso por tempo indeterminado; os partidos políticos, proibidos; a liberdade de imprensa e os direitos civis, suspensos até segunda ordem. Nos quartéis foram presos os que hesitaram em unir-se ao golpe, muitos dos quais foram fuzilados; mas nada disso se soube até bem depois, porque as Forças Armadas tinham de dar a impressão de ser monolíticas e indestrutíveis.

Protestos no Chile – Foto Colectivo 2+ – Carlos Vera M.

O general Augusto Pinochet encabeçou uma junta militar e logo se converteria na personificação da ditadura. A repressão foi instantânea, fulminante e profunda. Anunciaram que não ficaria pedra sobre pedra, que os marxistas seriam arrancados de seus covis onde quer que se escondessem, que a pátria seria purgada do câncer comunista a qualquer preço. Enquanto no bairro alto a burguesia finalmente celebrava com o champanhe que ficara guardado quase três anos, nas populações operárias reinava o terror.

É o início dos golpes patrocinados pelos Estados Unidos, em busca das riquezas dessas terras sul-americanas. A pátria dos trabalhadores subjugada para dar lugar ao paraíso dos empresários, os preços aterradores que impedem as pessoas de comer, a desigualdade social que assola países cuja abundância poderia garantir vida digna para todos os seus cidadãos. É com horror que os protagonistas do livro, Víctor Dalmau e Roser Bruguera se veem engolidos pela mesma força que os expulsara da Espanha em 1939.

Protestos em Santiago, Chile – Foto Crilling

Perguntava-se onde estavam antes os torturadores e os delatores que não eram vistos. Surgiram espontaneamente em poucas horas, preparados e organizados como se tivessem treinado durante anos. O Chile profundo dos fascistas sempre estivera ali, debaixo da superfície, pronto para emergir. Era o triunfo da direita soberba, a derrota do povo que acreditara naquela revolução.

A mulher que conversa comigo enquanto espero o meu almoço diz: “A história se repete”. O relato de Isabel Allende nos remete ao que vivemos agora, o fascismo enraizado que volta à superfície, sempre esteve lá, nunca foi embora. O povo que se une em protesto no Chile de 2019 é o mesmo reprimido e renegado pelo poder ditatorial. A luta nunca termina e o assombro comunista é sempre revisitado como uma lembrança amarga para controlar sociedades.

O fantasma do comunismo é o sonho de um prato de comida na mesa de todos. Os poderosos de plantão lucram com a fome, a miséria, a desigualdade. Enquanto seus talheres são de ouro, cidadãos padecem nas calçadas, congelados pelo frio que sopra os ares do mundo que se acaba pelas mãos e ambição humanas.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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