Glória Albues

A 1ª Roda de Conversas “Agitando a Resistência Negra”, realizada pelo Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso – IMUNE, aconteceu na Escola Municipal Elza Luiza Esteves, no bairro Canjica em Cuiabá.

O Instituto foi fundado em 2002, por Antonieta Luísa Costa, Jackeline Silva, Neusa Baptista, Auxiliadora Pereira, Isabel Ramos Queiroz, Maria de Lourdes Arruda, Laura Grace Oliveira, Débora Almeida, Luceny Vieira, Eládia Samara, Lenise Oliveira, Lucineide Oliveira e demais ativistas do movimento feminino negro em Mato Grosso.

É impossível nomear a todas, mas acho importante nomear a estas que ao representarem o ideário de suas companheiras, dão visibilidade às suas lutas.

Foto Claudenice Siqueira/Tuca

A cerimônia de abertura foi emocionante.

Do lado de fora, o céu exibia o negro da noite, iluminado por uma misteriosa luz, um azul marinho intenso, incomum àquela hora, que não se sabia bem de onde vinha. A lua nova, um delicado traço, tentava se esconder atrás de uma pequena nuvem.

Do lado de dentro, no Ginásio, cerca de 400 pessoas, mulheres, homens, jovens, idosos, crianças – a maioria negros – exibiam largos sorrisos, trocavam abraços, reencontravam amigos. Nada parecido com aquelas aberturas oficiais enfadonhas, onde o público mal disfarça a sua impaciência e o desejo que tudo comece e termine logo. Pra poder sair e partir pra outra.

Foto Claudenice Siqueira/Tuca

Longe disso. Ali, o movimento dos corpos imprimia a gestualidade do afeto, da alegria, do pertencimento, unindo a todos, em comunhão. Um momento raro. Uma celebração.  As Mães de Santo Ângela Maria e Nilce, os Pais de Santo Bosco e Junior de Xangô, eram saudados por todos com respeitosa reverência.

Reparei numa senhora miudinha, usando um vestido estampado de pequeninas flores amarelas, um lenço branco na cabeça, sentadinha, muito quieta, um sorriso doce nos lábios, olhos semicerrados, que a tudo observava, porém de um jeito diferente, como se ali não estivesse. Olhava de perto, mas de tão longe… Transvia.

Sem saber bem porquê, peguei carona na canção de D. Ivone Lara: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensar?”

Voei.

Fui parar em N. Sra. do Livramento, terra dos meus avós paternos e maternos, onde, quando eu era criança, o baile da Festa de São Benedito, era realizado em três casas diferentes. Numa dançavam os brancos, noutra os pardos, e, ainda noutra, os negros. Nessa ordem. E numa festa cristã, de um santo negro. Pois é…

Voei ainda mais longe. Tão longe que nem havia nascido. Pode? Pode. Nessa ocasião, Verediano, neto de Maria Joana, nascida no Quilombo do Mata Cavalo, tinha se apaixonado perdidamente por Benedita, filha de uma família branca (ouvi a palavra “pura” algumas vezes). Escândalo em Livramento. Verediano era afilhado dos pais de Benedita. Mas, tornar-se genro? Impensável.

Verediano “roubou” Benedita, e juntos fugiram à cavalo para Poconé. Uma comitiva partiu em busca dos fugitivos, para matar o “transgressor” e trazer a moça de volta. Para minha sorte, não conseguiram encontrá-los senão eu não estaria aqui para contar a história deles, os meus pais.

Minha irmã, Tereza Albues, muitos anos depois, viria a escrever no seu romance O Berro do Cordeiro em Nova York: – “Quando cresci minha avó não me deixava chegar muito perto dela, porque dizia que eu cheirava mal. Como assim? Se eu tomava banho todo dia, me ensaboava, esfregava folhas de goiabeira nos dentes, usava bucha, sabugo de milho no corpo, feria a pele. Nada adiantava. Ela tapava o nariz com o xale cinza que sempre trazia aos ombros. É a catinga de negro, não suporto, ouvi ela dizer um dia”.

No romance, a protagonista tem um outro nome, afinal, trata-se de um livro de ficção, mas eu sei que Tereza falava de si mesma aos 9 anos de idade. De todos nós, irmãos, era ela a única que tinha a pele escura. Vovó amava a todos nós. Menos a ela.

Foto Claudenice Siqueira/Tuca

Meus pensamentos são interrompidos pela voz firme de Antonieta Luísa Costa, que naquele momento usava da palavra, ao microfone: – Nosso Instituto busca o engajamento de mulheres e jovens negras, urbanas, rurais e quilombolas, no combate ao racismo, à violência, às desigualdades de gênero, visando a melhoria da qualidade de vida da mulher negra por meio de ações e projetos que contribuam para a sua inserção social, econômica e politica, desenvolvendo a autoestima pessoal e coletiva, tendo como base a ancestralidade, a identidade racial e a cultura afro-brasileira.

Dou um suspiro de alívio.

Ao meu lado a senhora miudinha olha para além do tempo e sorri.

Também parece aliviada.

A voz de Antonieta me faz lembrar de seu pai, Geraldo Henrique Costa (1939-1990), que ao lado de Edevande França, D. Adalgisa, D. Dora, D. Magnólia, Claudomiro Pires, Lúcio Libânio, Francisca, Seu Benedito da Canjica, D. Juja e tantos outros, criou nos idos dos anos oitenta o Movimento União e Consciência Negra.

Vi, incontáveis vezes, Geraldo e muitos dos seus companheiros, conversando com Carlos Rosa, então diretor da Casa da Cultura, sobre esse projeto. Eles se encontravam sempre nos finais de tarde, falavam em voz baixa, a noite adentrando pelas janelas do prédio. Mas foi no chão da Igreja do Rosário e São Benedito, que o movimento nasceu e que deu origem ao longo do tempo a tantos outros frutos de resistência e luta. Como o próprio IMUNE..

Foto Cleudenice Siqueira/Tuca

Agora é a vez de Jackeline Silva, a mestre de cerimonia, anunciar os homenageados. Lideranças femininas negras que atuam no cenário internacional, nacional e mato-grossense, religiosos, artistas, representantes LGBTI, homens e mulheres que agitam a resistência negra nas artes, na política e nos movimentos sociais.

Pelas escolhas, fica claro que o Instituto se alia também aos demais setores  da sociedade que militam pela autonomia dos povos indígenas, pela sustentabilidade do meio ambiente, contra a violência estrutural, a censura, o desmonte da política cultural, o machismo, o feminicídio, a homofobia, a intolerância religiosa. Uma diversidade que atesta a pluralidade das ações propositivas dessas singulares mulheres.

Os temas da Roda de Conversas que serão debatidos até o mês de março são anunciados e abordam entre outros assuntos: Mulheres Negras em Movimento pela Democracia, Políticas Públicas de Saúde da População Negra, Juventude Negra e a Luta Antirracista, Empoderamento das Mulheres Negras e Participação Social.

A cerimônia chega ao final. Os participantes se levantam atendendo a um convite da organização para se servirem de uma feijoada, cujo aroma já anuncia a bem-aventurança dos sentidos.

Busco com o olhar a velha senhora. Procuro por todo o ginásio, e nada. De onde teria vindo? Para onde teria ido? Foi aí que me dei conta. Lá fora, pequeninas flores amarelas desapareciam na noite iluminada pela misteriosa luz de um azul marinho intenso.

Ela tinha voado.

Pensei em Maria Joana, que nenhum de nós chegou a conhecer em vida. Os seus pais, nossos tataravôs, de onde teriam vindo? Do Congo, Angola, Benguela? Ou de Cabinda, Costa da Mina? Tantas perguntas…nenhuma resposta.

Mas desconfio que, de um certo modo, alguém já a tenha.

Quando Tereza, mais que irmã, minha amiga de nascença, chegou ao céu no ano de 2005, a nossa bisavó a deve ter recebido com o mesmo sorriso da senhora miudinha e docemente sussurrado ao seu ouvido: – Que menina mais cheirosa!

E voaram juntas, plenas de infinito, ao encontro dos ancestrais.

Gloria Albues, cronista, roteirista, diretora de audiovisual, gestora pública, 
ativista cultural.

4 Comentários

  1. Antonieta Luisa Costa Costa O IMUNE-MT agradece a sua sensibilidade em relatar a resistência do povo negro em especial das MULHERES Negras do MT nesse evento que representa para todas nós a retomada das lutas por direitos, muitas vezes perdida.

    Marta Catunda
    Ainda repleta da emoção dessa crônica e dessa ancestralidade que muitos desconhecemos mas, que trazemos no corpo e no sangue .Recordo a minha própria origem do ancestral que assumiu o nome Catunda de sua mãe permitindo que chegasse até a mim a ancestra…Ver mais

    Ivan Belém
    Como mulher negra, vc nos revelou tão bem esse ambiente do encontro entre nossa gente. Meu orgulho por pertencer ao grupo se fortalece nessas ocasiões e me reporta à minha bisavó Miquelina Maria da Luz e tantas outras negras valentes e anônimas, cujo legado nos chega aos dias atuais. Axé odara

    Aluízio De Azevedo Júnior
    Parabéns às mulheres negras de Mato Grosso, resistindo à onda fascista e ensinando a união aos movimentos sociais. Parabéns à cronista que sensivelmente compreende a importância de iniciativas como estas!

    Marta Catunda
    Marta Catunda Parabéns a todas!

    Meire Pedroso

    Parabéns Gloria Albues! Eu carrego comigo essa luta interna provocada pela miscigenação.

  2. Meire Pedroso está com Ivan Belém e outras 2 pessoas.
    Meire Pedroso
    Amiga, você teceu com sábias palavras o real significado de nossa identidade étnico-racial nesse país de muitos contrastes e preconceitos.Voar é preciso! Um voo livre que faça a travessia entre o presente e o passado e vice-versa, num encontro mágico com nossas histórias.Nesse texto, você fez isso de uma maneira tão sublime, que fica impossível não cutucar memórias significativas de dor e alegria.Voamos juntas nas asas da imaginação.Saio mais forte.Mais consciente de que a arte precisa assumir seu protagonismo na luta contra a barbárie.Evoé!

  3. Glorinha Albues, embora eu não aconhça pessoalmente, a tenho em alta consideração, envolvida pelos comentároos e referência feitas pelo meu marido, Alair Fernando, que tem um grande apreço pelas suas ações, conhecimento cultural e luta pela cultura, sempre voltafa para as minorias. Não podemos esquecer que vc foi pioneira na Lavagem das Escadarias da Igreja do Rosário, nos carnavais cuiabanos entre outros. Parabéns pelo texto sensível e emocionante.Nos sentimos contemplados.

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