Durante toda a noite de 20 de julho e na manhã do dia seguinte, milhares de fiéis desfilaram diante do corpo, mantido de pé atrás da janela da residência daquele que fizera milagres (DELLA CAVA, 2014, 327).

Aquela história de dormir em pé já era bem famosa entre os moradores do Juazeiro. Muita gente havia testemunhado a cena. Cícero arriava a cabeça sobre o peito e ressonava nas horas mais improváveis (LIRA NETO, 2009, p. 59).

Socorro Acioli, ao escrever “A cabeça do santo”, mergulha em uma temática cara ao sertanejo nordestino, esse biotipo que não tem fronteira, não tem fim, mas tem em sua casca florida a marca do sol a pino que o faz habitante do sertão. Esse lócus em permanente zona de tensão, mas abençoado como terra de homens fortes, muitos antes da chegada de Euclides da Cunha naquele pedaço da Bahia que ousou se levantar contra o braço forte. A bibliografia sobre o tema é fascinante, larga, profunda. Em verso e prosa, em película e bandas magnéticas, agora digitais, esse outro mundo se faz presente com a máxima e verdadeira assertiva que diz que o homem sai do sertão, mas o sertão não sai do ser!

JUAZEIRO DO NORTE – ESTÁTUA DE PADRE CÍCERO: O monumento em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista foi inaugurado no dia 1º de novembro de 1969, no alto da Serra do Catolé ou, como é mais conhecida, Colina do Horto

Ralph Della Cava traça com precisão o perfil histórico e sociológico do milagre de Juazeiro, obra clássica em que aborda as origens do poder político de Padre Cícero, maior do que o religioso e moral. O romance aborda inúmeros aspectos da cultura sertaneja, do folclore político, das artimanhas para a sobrevivência em meio a esse misto de esoterismo primitivo e especulação financeira da miséria, em todos os níveis. É possível se observar a construção de personagens que se reproduzem aos milhares por todos os cantos desse país, quer seja em Juazeiro do Norte, na Sucupira, de Odorico Paraguassú e ou demais localidades Brasil afora, quero dizer, Brasil adentro.

Mergulhando nesse manancial de águas profundas de que se compõe a vida do padre Cícero, o historiador e biógrafo Lira Neto também constrói seu painel de um homem redivivo que adensa o folclore e implementa o turismo religioso aos pés da Chapada do Araripe. A leitura dessas e outras obras que engrandecem a fortuna crítica desse mito nos alçam a um outro patamar de compreensão da entidade. Impossível extrair dessas obras uma ou outra citação na tentativa de abarcar uma síntese primitiva do que foi essa figura.

Socorro Acioli não precisa, como todo bom romancista, de tantos floreios para levantar seu discurso, promover uma aceitação da mancha de tinta que se espalha pela página ao trazer à baila uma reconstrução da exploração da religiosidade popular pelos inescrupulosos fabricantes de milagres que se espraiam por aí. Na companhia das letras, das belas letras que edificam sua história materializam-se figuras como Samuel, Rosário e Madeinsua, dentre outras criações oportunistas de um mosaico em que nada é cristalino. Não farei uso de clichês para dizer que o leitor se surpreende, que o inusitado cria um universo paralelo, que a metáfora fugidia encontra eco na realidade crua e nua que despe o sertanejo de sua pureza e iconoclastia.

Caminho de luz que vai conduzindo o leitor para dentro da história. O brilho da referida Candeia espalha, semeia pela borra do Café um espaço interno mediado pela superstição. A Casa, o Cachorro, a Cabeça. Ao contrário dos fachos de luz, o Carvão representa a coivara, a devastação concreta de todo um imaginário. O que era fruto da religião, transformado em política, economia, propina, corrupção. Cícero Conversa Consulta, faz Casamento. Mas não é de Cícero que a narração fala, mas de Samuel, utilizado talvez para conquistas grandes a favor do povo de Candeia.

O Comércio foi arrebatador, mas a Cobiça, de Caxias do Sul a Casablanca, retratada em forma de Cordel mereceu Cuidado, Canção sem notas, jaqueta com Capuz.  Muita areia para tão pouco caminhão. Cachaça, Cristo Redentor, Chico Coveiro, Cabo Verde, Cativeiro, Cadeia. Conselho, Corpo, Contas, Canindé, Coragem.

Trinta verbetes iniciados pela mesma letra, consoante ao construto metafórico do romance. A cabeça do santo é diversão para toda a família. Ficção de boa qualidade. Diversão garantida para quem valoriza a imaginação, como também para os que buscam compreender o funcionamento do cérebro humano: corpo e cabeça habitando os labirintos interiores de cada um de nós. Se para cada cabeça sempre haverá uma sentença, talvez caiba uma epígrafe sorrateira na lápide do romance, gênero que teve sua morte anunciada inúmeras vezes ao longo do século passado:

Uma xilogravura na capa mostrava a cabeça do santo no chão, com uma lágrima que virava rio e um homem fugindo com sacos de dinheiro, ao fundo, em perspectiva.

Não era um folheto inocente, quem o fez ou encomendou tinha a intenção de revelar verdades do passado que até então ninguém conhecia (ACIOLI, 2014, p. 89).

 

REFERÊNCIA

ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

NETO, Lira. Poder, Fé e Guerra no Sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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